Lenin
e o
Partido de Vanguarda

Lenin

Kautskismo e as Origens da Socialdemocracia Russa

Recentemente o Grupo Marxista Internacional britânico (GMI) e os Socialistas Internacionais (hoje Partido Socialista dos Trabalhadores – SWP/IST), dois dos maiores grupos da “extrema esquerda” britânica, decidiram revisar a história dos Bolcheviques. Esses grupos tentam negar ou ofuscar o princípio de um partido de vanguarda com centralismo democrático apontando elementos da socialdemocracia clássica mantidos pelos Bolcheviques antes de 1914 e também manobras táticas contra os Mencheviques.

O GMI, seção britânica do pseudo-trotskista Secretariado Unificado, realizou a memorável façanha de tornar Lenin um conciliador que preza pela unidade acima de tudo, baseando-se no fato de que, até 1912, os Bolcheviques e Mencheviques eram formalmente tendências dentro de um Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR) unitário. O alvo particular desse revisionismo é justificar uma grande manobra de unidade na esquerda britânica. Sua linha é de que “as diferenças políticas que Lenin e Trotsky consideraram que poderiam ser contidas em uma organização única eram muito maiores do que aquelas de dividem a esquerda revolucionária na Grã-bretanha hoje” (Red Weekly, 11 de Novembro de 1976). Para um entendimento maior do revisionismo do GMI e seu propósito tático batido, leia “GMI Transforma Lenin em um Menchevique”, em Workers Vanguard Número 164, 1 de Julho de 1977.

A mais ambiciosa releitura da história dos Bolcheviques é a de Tony Cliff, líder de longa data do movimentista e reformista SWP/IS. A corrente de Cliff carrega hoje um manto de “esquerda”; algumas vezes eles até aparecem em protestos com retratos de Lenin e Trotsky. Mas esse grupo se perdeu há muito tempo quando, em 1950, sob a tensão de intensa opinião pública anti-comunista, se recusou a defender a Coréia do Norte contra o imperialismo dos EUA e rompeu com o movimento trotskista em cima desta questão. E ainda assim, esta completamente descarada “CIA socialista” agora se propõe a reinterpretar o que Lenin realmente quis dizer em O Que Fazer?

No passado, Cliff foi um proeminente e explícito defensor anti-leninista do menchevismo. O seu livro de 1959, Rosa Luxemburgo, atesta: “Para marxistas nos países industriais avançados, a posição original de Lenin serve muito menos como um guia do que a de Rosa Luxemburgo”. Esta declaração ousada foi retirada da segunda edição (1968), mas a posição substantiva de Cliff se manteve a mesma.

Apesar disso, os seguidores de Cliff não fazem nada além de seguir a última moda. E em contraste com os anos de 1950 e 60, o bolchevismo “rígido” está agora “na moda” entre jovens de esquerda. Então Cliff escreveu recentemente uma aparentemente simpática biografia de Lenin, da qual dois dos três volumes planejados já foram publicados. Aqui Cliff apresenta Lenin à sua própria imagem, como um movimentista eclético e nacionalmente limitado. A mensagem central de Cliff é de que não existem princípios e nem mesmo normas sobre a questão organizativa:

“A atitude de Lenin com relação a formas organizacionais sempre foi concreta, por isso a sua força. Ele nunca foi enganado por esquemas abstratos, dogmáticos de organização, mas esteve sempre pronto a mudar a estrutura organizativa do partido para refletir o desenvolvimento da luta de classes.
“A organização é subordinada à política. Isso não significa que não tenha influência independente na política. Mas ela é, como deve ser, subordinada às necessidades concretas de cada dia. A verdade sempre é concreta, como Lenin reiterou diversas vezes. E isso também se aplica às formas organizativas necessárias para realizar tarefas concretas.” [ênfase no original]

Em outras palavras, o que quer que funcione num determinado período, faça.

Leninistas verdadeiros reconhecem a prevalência dos princípios encarnados nos primeiros quatro congressos da Internacional Comunista acima da prática bolchevique anterior a 1914. Além do mais, Trotsky sistematizou e aprofundou os conceitos leninistas desenvolvidos ao longo do turbilhão revolucionário entre 1917-23 ao construir a Quarta Internacional. Negar a evolução do bolchevismo de 1903 até 1917 é apagar a oposição principista do leninismo contra o kautskismo. Apelar à prática bolchevique pré-1914 contra o centralismo democrático da Quarta Internacional de Trotsky é equivalente a citar a “ditadura democrática do proletariado e do campesinato” de Lenin contra a “revolução permanente” de Trotsky.

O Partido Kautskista de Toda a Classe

O primeiro volume da biografia de Cliff, cujo subtítulo é “Construindo o Partido”, termina em 1914. Esse trabalho menciona Kautsky exatamente duas vezes e a Segunda Internacional nenhuma! Essa inacreditável omissão já valeria para desacreditar o livro de Cliff como um estudo sério da posição de Lenin sobre a questão do partido.

Da oferta de August Bebel em 1905 para mediar o racha bolchevique-menchevique até a “conferência de unificação” marcada pelo escritório da Internacional Socialista na véspera da Primeira Guerra Mundial, a liderança da Internacional prestou um papel significativo na vida interna do POSDR. Os elementos pró-unidade em particular, acima de todos Luxemburgo e Trotsky, foram chamados a conseguir pela Internacional centrada na Alemanha o que não tinham conseguido no movimento russo.

Tony Cliff Workers Hammer

Tony Cliff

Lenin era um revolucionário socialdemocrata e, como o próprio Cliff nota no segundo volume, Kautsky “era o único líder socialista vivo que Lenin respeitava profundamente”. (Isso na verdade é um exagero: em 1905, quando Kautsky apoiou os Mencheviques, Lenin o criticou duramente). Um entendimento da posição de Lenin sobre a questão do partido deve, então, começar com a posição ortodoxa de Kautsky; essa era a doutrina do “partido de toda a classe” ou “uma classe – um partido”. O conceito de Kautsky de um “partido de toda a classe” não significava o recrutamento de toda a população proletária para o partido. Ele reconhecia que os ativistas políticos na classe trabalhadora seriam uma pequena minoria. Nenhum socialdemocrata negava que o critério para ser membro envolvia certo nível de consciência socialista, ativismo e disciplina. O que a doutrina de Kautsky significava era que todas as correntes que se reivindicavam socialistas deveriam estar em um partido unitário. Kautsky replicava que socialdemocratas revolucionários poderiam se unir e mesmo ter uma colaboração com reformistas não-marxistas. Assim, a liderança do Partido Socialdemocrata Alemão (SPD) por vários períodos colaborou de forma próxima com o declaradamente reformista, eclético socialista francês Jean Jaures.

A liderança do SPD era imensamente orgulhosa de sua unidade disciplinada pelo partido, que eles reconheciam ser a sua maior fonte de força. Bebel/Kautsky desempenharam um papel decisivo na reunificação dos socialistas franceses em 1905, superando o racha entre o Partido Socialista Marxista da França, liderado por Jules Guesde, e o reformista Partido Socialista Francês de Jaures.

Durante a campanha para reunir os franceses, a Internacional adotou a doutrina de “uma classe – um partido” em conformidade com a resolução de seu Congresso de Amsterdã:

“Para que a classe trabalhadora possa estender toda a sua força na luta contra o capitalismo é necessário que em cada país onde existirem partidos burgueses de diversos tipos, haja apenas um partido socialista, como existe apenas um proletariado. Dessa forma, é o dever imperativo de todos os camaradas e organizações socialistas fazer o esforço para construir essa unidade baseada nos princípios estabelecidos nos congressos internacionais, uma unidade necessária aos interesses do proletariado, antes dos quais são esses camaradas responsáveis, assim como pelas consequências fatais de uma violação continuada”. [ênfase no original]
– reproduzido em Olga Hess Gankin e H.H. Fisher, Os Bolcheviques e a Guerra Mundial (1940)

Antes da Primeira Guerra Mundial, Lenin nunca desafiou o princípio acima e o afirmou numa ocasião. Quando, em 1909, os Bolcheviques expulsaram a ultra-esquerda Otzovita (os “Ultimatistas”) dos seus quadros, Lenin justificou isso contrastando a exclusividade de uma tendência com a inclusividade de um partido socialdemocrata:

“Em nosso partido o bolchevismo é representado pela tendência bolchevique. Mas uma tendência não é um partido. Um partido pode conter uma gama inteira de opiniões e correntes de pensamento, cujos extremos podem ser diretamente contraditórios. No partido alemão, lado a lado com a pronunciadamente ala revolucionária de Kautsky, vemos a ala ultra-revisionista de Bernstein.” [ênfase no original]
– “Relatório da Conferência do Conselho Editorial Estendido do Proletary” (Julho de 1909)

Em prática na Rússia, Lenin trabalhou para criar uma vanguarda disciplinada, programaticamente homogênea e revolucionária. Até a Primeira Guerra Mundial, entretanto, ele não rompeu em princípio com a doutrina kautskista de “partido de toda a classe”. O resolvimento dessa contradição dialética foi um dos mais importantes elementos criadores do leninismo como uma doutrina histórica mundial, como o marxismo da nossa época.

Análise de Kautsky sobre o Oportunismo

A doutrina kautskista do partido inclusivo foi construída sobre uma teoria histórico-sociológica particular do oportunismo. Correntes oportunistas, como foi colocado, seriam uma sobrevivência da democracia pequeno-burguesa representada majoritariamente pela intelligentsia (intelectualidade) e condicionada pela imaturidade econômica e ideológica das massas trabalhadoras. O crescimento do proletariado e de sua organização acabaria por reforçar a socialdemocracia revolucionária. Assim, Kautsky podia tolerar uma corrente como a de Jaures como uma forma de transição inevitável da democracia radical para o marxismo revolucionário.

A identificação de Kautsky do oportunismo com correntes pré-marxistas derivava da história da esquerda européia nas décadas seguintes às revoluções de 1848. As principais correntes opostas ao marxismo (por exemplo, as de Proudhon, Lassale e Bakunin) expressavam todas o desejo de uma classe artesã de prevenir sua queda no proletariado industrial. Marx e Engels entendiam que o socialismo utópico artesão não poderia ser vencido simplesmente por propaganda e agitação, mas requeriam um verdadeiro desenvolvimento da sociedade capitalista. Foi reconhecido na Segunda Internacional que o marxismo iria superar essas correntes primitivistas, como o lassaleanismo na Alemanha e o proudhonismo na França, principalmente pela transformação da classe dos artesãos urbanos em proletariado moderno. O processo pelo qual o marxismo superou o lassaleanismo, o proudhonismo, bakuninismo, etc. se tornou para Kautsky o paradigma da luta contra o oportunismo em geral.

A visão do reformismo como um atraso histórico ou regressão se mostra nos objetivos limitados de Kautsky na controvérsia “revisionista” com Bernstein. Ele desenhou uma linha reta entre os ingênuos reformistas pré-marxistas, como Jaures, e os conscientes revisores do marxismo. Numa carta de 23 de Maio de 1902 para Victor Adler, Kautsky defendeu a liderança socialista belga da acusação de revisionismo com o fundamento de que eles nunca tinham sido marxistas, para começar, e nem fingiam ser:

“Eu mantenho uma atitude inteiramente sem preconceitos em relação a eles; o palavreado sobre o seu revisionismo não me exalta. Eles não tem nada para revisar, porque eles não têm teoria. O socialismo eclético e vulgar para o qual os revisionistas gostariam de reduzir o marxismo é algo além do que eles [os socialistas belgas] sequer começaram a desenvolver. Proudhon, Schaffle, Marx – são todos um para eles, sempre foi assim, eles não retrocederam na teoria e eu não tenho motivo para censurá-los.”
– citado em George Lichtheim, Marxismo (1961)

O objetivo de Kautsky na controvérsia “revisionista” não ela limpar a Segunda Internacional de tendências, ou mesmo de práticas reformistas, mas preservar a integridade doutrinal do campo marxista. Se isso fosse atingido, acreditava Kautsky, o desenvolvimento da luta de classes acabaria por garantir o triunfo da socialdemocracia revolucionária.

Kautsky localizava a fraqueza da socialdemocracia revolucionária no atraso do proletariado, que refletia tanto uma contínua identificação com a pequeno-burguesia quanto uma falta de confiança no movimento dos trabalhadores:

“Mesmo após um grande tempo tirados da classe dos pequenos capitalistas e dos pequenos agricultores, muitos proletários carregam as conchas dessas classes sobre eles. Eles não sentem a si próprios como proletários, mas como se fossem donos de propriedade… Outros, novamente, foram mais além e reconheceram a necessidade de lutar contra os capitalistas que permanecem em antagonismo em relação a eles, mas não se sentem seguros o suficiente para declarar guerra contra todo o sistema capitalista. Estes buscam alívio nos partidos capitalistas e governos.”
A Estrada Para o Poder (1909)
Paul Axelrod e August Bebel Dietz Verlag

Paul Axelrod e August Bebel

Para Kautsky, o crescimento do proletariado, dos sindicatos, etc. fortalecia objetivamente as forças revolucionárias na sociedade. O que era necessário à socialdemocracia era uma paciente e pedagógica atitude com relação aos trabalhadores atrasados, embora Kautsky também reconhecesse que a consciência de classe poderia saltar durante uma crise revolucionária.

Com a exceção parcial de Luxemburgo, nenhum socialdemocrata no pré-guerra localizou a fonte principal do reformismo no conservadorismo da burocracia socialmente privilegiada criada pelo crescimento e força do movimento dos trabalhadores, dos partidos socialdemocratas e seus sindicatos afiliados.

A Análise Sociológica de Lenin sobre o Menchevismo

Lenin, seguindo a metodologia de Kautsky, considerou o menchevismo uma extensão do radicalismo pequeno-burguês do século XIX dentro do movimento dos trabalhadores. Porque considerava os Mencheviques uma tendência “intelectualista”, de certa forma estando de fora do movimento dos trabalhadores, ele podia romper com eles sem postular a existência de dois partidos socialdemocratas competidores, um revolucionário, o outro reformista. Lenin estava convencido de que o crescimento da organização socialdemocrata entre o proletariado russo iria garantir o triunfo do bolchevismo.

Lenin considerava o grupo de Martov de 1903 como uma expressão das atitudes e valores da velha, defensora de liberdades e individualista intelectualidade revolucionária, como uma rebelião do espírito dos círculos de debate contra a construção de um partido real de trabalhadores:

“Nós consideramos, entretanto, que a doença que afeta o partido é um problema de dores crescentes. Nós consideramos que a causa por trás dessa crise é a transição da forma de círculos de debate para a forma de partido, a forma de vida da socialdemocracia; a essência de sua luta interna é o conflito entre o espírito de círculos de debate e o espírito de partido. E, consequentemente, só nos livrando dessa doença, o nosso partido pode se tornar um partido verdadeiro….
“Finalmente, os quadros da oposição tem em geral sido desenhados principalmente por aqueles elementos em nosso partido que consistem em intelectuais. A intelectualidade é sempre mais individualista que o proletariado, devido às suas próprias condições de vida e trabalho, que não envolvem diretamente uma combinação de esforços em larga escala, não a educam diretamente através do trabalho coletivo organizado. Os elementos intelectuais, então, acham difícil se adaptar à disciplina da vida de partido, e aqueles que não são iguais a eles naturalmente levantam a bandeira da revolta contra as necessárias limitações organizativas.” [ênfase no original]
– “Ao Partido” (Agosto de 1904)
Delegados ao congresso de Amsterdã de 1904 da Segunda Internacional Dietz Verlag

Delegados ao congresso de Amsterdã de 1904 da Segunda Internacional

Lenin da mesma forma analisou o liquidacionismo menchevique durante o período entre 1908-12 (oposição ao partido clandestino) em termos de intelectuais lutando contra o proletariado:

“Os primeiros a fugir da clandestinidade foram os intelectuais burgueses que sucumbiram à pressão contra-revolucionária, aqueles 'companheiros de viagem' do movimento da classe trabalhadora socialdemocrata que, como aqueles na Europa, tinham sido atraídos pelo papel libertador desempenhado pelo proletariado … na revolução burguesa. É fato bem conhecido que uma massa de marxistas deixou a clandestinidade após 1905 e encontrou lugar para si própria em todos os tipos de cantos aconchegantes legais para intelectuais.”
Como Vera Zasulich Desenvolve o Liquidacionismo (Setembro de 1913)

A análise sociológica de Lenin do menchevismo era válida até onde foi. O grupo de Martov em 1903 representava em parte os hábitos da velha intelectualidade revolucionária; leve-se em conta Vera Zasulich nessa consideração. O liquidacionismo menchevique representava em parte a fuga de intelectuais do POSDR em direção à respeitabilidade burguesa durante o período de reação. Mas o menchevismo não era primariamente uma tendência externa ao movimento operário. Os mencheviques russos anteciparam o reformismo operário da Segunda Internacional como um todo, incluindo particularmente seus partidos de massa. Foi somente durante a Primeira Guerra Mundial, em estudos que levaram a Imperialismo, que Lenin localizou a fonte do oportunismo socialdemocrata dentro do movimento dos trabalhadores – numa burocracia operária descansando no estrato mais alto da classe trabalhadora.

Iskraismo

O marxismo russo organizado se originou em 1883 quando Plekhanov rompeu com a corrente populista dominante para formar o pequeno grupo Emancipação do Trabalho no exílio. Durante o fim dos anos de 1880 e começo dos 90, o marxismo na Rússia consistia de círculos de propaganda locais projetados para educar uma fina camada de trabalhadores avançados. No meio dos anos de 1890, os círculos de propaganda se viraram em direção à agitação de massa intervindo em uma grande onda de greves. Essa virada foi em parte inspirada pela Liga Judaica. Solidariedade étnica permitiu à intelectualidade judaica marxista alcançar e organizar trabalhadores judeus na frente da socialdemocracia russa como um todo.

Em parte por causa da prisão dos mais experientes líderes marxistas (por exemplo, Lenin, Martov), a virada em direção à agitação de massa rapidamente degenerou-se em reformismo. Esta tendência, apelidada de “economicismo” por um hostil Plekhanov, limitou sua agitação a demandas sindicais simples, enquanto passivamente apoiava os esforços da burguesia liberal para reformar o absolutismo czarista. Em termos de socialdemocracia internacional, os economicistas eram hostis ao marxismo ortodoxo e consequentemente eram frouxamente associados com Bernstein na Alemanha e o possibilismo na França. No fim dos anos de 1890, o economicismo era a tendência dominante entre os socialdemocratas russos.

Em 1900, a segunda geração de marxistas russos (Lenin, Martov) fez uma coalizão com os fundadores (Plekhanov, Axelrod, Zasulich) para retornar a socialdemocracia russa para as suas tradições revolucionárias como encorpadas no programa do Emancipação do Trabalho. A tendência marxista revolucionária foi organizada através de jornal Iskra. Lenin era o organizador do grupo do Iskra. Ele enviou agentes pela Rússia cuja tarefa era ganhar os comitês socialdemocratas locais, ou rachá-los, caso fosse necessário. O Iskra forneceu, pela primeira vez, um centro organizador para um partido socialdemocrata russo.

Polemizando contra as táticas divisionistas bem-sucedidas de Lenin, os economicistas apontaram que a seção alemã não tinha procurado excluir os seguidores de Bernstein. Lenin não brigou e, de certa forma não poderia brigar pela exclusão dos oportunistas do parido socialdemocrata como um princípio. No lugar, ele justificou suas táticas de divisão por uma série de argumentos baseados na particularidade da situação do partido russo. Até a primeira Guerra Mundial, Lenin iria apelar para um ou outro aspecto particular da Rússia para justificar a construção de um partido de vanguarda programaticamente homogêneo.

Qual eram os argumentos de Lenin para construir o POSDR sem e contra os economicistas? O partido alemão tinha fortes tradições revolucionárias e uma liderança de autoridade. O partido russo era embrionário e poderia facilmente cair no oportunismo. A liderança alemã, Bebel/Kautsky, era revolucionária, enquanto os bernisteinianos eram uma pequena minoria; em contraste, os economicistas eram temporariamente a tendência dominante na socialdemocracia russa. Os “revisionistas” alemães aceitaram a disciplina do partido, os economicistas russos eram incapazes de aceitar a disciplina do partido. E, de qualquer forma, o POSDR não era uma organização centralizada. Esses argumentos estão expressos em O Que Fazer? (1902):

“O importante é notar que a atitude oportunista em relação aos socialdemocratas na Rússia é o oposto àquela na Alemanha. Na Alemanha … os socialdemocratas revolucionários estão a favor de preservar o que são: eles permanecem a favor do velho programa e das táticas que são universalmente conhecidas…. Os “críticos” desejam introduzir mudanças e, como esses críticos representam uma insignificante minoria, e como são muito tímidos e hesitantes em seus esforços revisionistas, é fácil entender os motivos da maioria em limitar-se à seca rejeição de tal “inovação”. Na Rússia, entretanto, são os críticos e os economicistas que querem expressar o que são; os “críticos” desejam que continuemos a nos considerar marxistas e que lhes seja garantida a “liberdade de criticar”, a qual eles se aproveitam ao máximo (porque, na verdade, eles nunca reconheceram nenhuma forma de laços partidários e, além disso, nunca tivemos um órgão do partido com reconhecimento geral que pudesse “restringir” a liberdade de criticar até mesmo através de aconselhamento.” [ênfase no original]

Como é reconhecido de forma geral, O Que Fazer? de Lenin (1902) era a declaração de autoridade do Iskraismo. Apesar de sua suposta simpatia quanto a Lenin, Cliff é por demais um movimentista e menchevique para aceitar O Que Fazer?. De fato, uma proposta central da sua biografia é discutir que a polêmica de 1902 é uma declaração exagerada, unilateral que Lenin repudiou, no seu conteúdo, posteriormente.

Primeiramente, Cliff vulgariza a posição de Lenin e então polemiza contra sua própria invenção fantoche:

“Em geral a dicotomia entre luta econômica e política é estranha a Marx. Uma demanda econômica, se é setorial, é definida como “econômica” nos termos de Marx. Mas se a mesma demanda é feita contra o estado de coisas ela é “política” …. Em muitos casos lutas econômicas (setoriais) não dão origem a lutas políticas (com conteúdo de classe), mas não há uma muralha da China entre as duas, e muitas lutas econômicas se tornam lutas políticas.” [ênfase no original]

Lenin não ataca os economicistas por serem indiferentes à política governamental. Os economicistas russos agitavam por reformas econômicas iniciadas pelo Estado e apoiavam direitos democráticos, particularmente o direito à organização. Nesse sentido eles apoiavam passivamente os liberais. Em O Que Fazer? Lenin ataca o programa político dos economicistas como encapsulado no slogan “dar à luta econômica em si mesma um caráter político”:

“Dar 'à luta econômica em si mesma um caráter político' significa, então, se esforçar para assegurar a satisfação por estas demandas econômicas, a melhoria de condições de trabalho em cada ramo separado por meio de 'medidas legislativas e administrativas' …. Isso é exatamente o que os sindicatos fazem e sempre fizeram….
“Assim, a pomposa palavra de ordem 'dar à luta econômica em si mesma um caráter político' que soa 'incrivelmente' profunda e revolucionária, serve como uma venda para esconder o que é, de fato, o esforço tradicional para degradar as políticas socialdemocratas ao nível das políticas sindicais!” [ênfase no original]

Para Lenin, consciência de classe política, ou consciência socialista, era o reconhecimento pelo proletariado da necessidade de se tornar a classe dominante e reconstruir a sociedade sobre bases socialistas. Qualquer coisa a menos era consciência sindical.

Como todas as outras correntes movimentistas e socialdemocratas atuais, Cliff deve atacar a famosa declaração de Lenin de que consciência socialista é levada aos trabalhadores de fora por intelectuais revolucionários, que consciência de classe não surge simplesmente através das lutas operárias para melhorar suas condições. Aqui estão as observações factuais de Cliff sobre essa questão:

“Não há dúvida de que essa formulação enfatizou exageradamente as diferenças entre espontaneidade e consciência. Por que, de fato, a completa separação de espontaneidade da consciência é mecânica e não-dialética. Lenin, como nós veremos depois, admitiu isso. Pura espontaneidade não existe na vida….
“A lógica da justaposição mecânica de espontaneidade e consciência era a completa separação entre o partido e os verdadeiros membros da liderança da classe trabalhadora que já haviam se elevado na luta. Ela assumia que o partido tinha respostas a todas as perguntas que a luta espontânea pudesse trazer a tona. A cegueira dos muitos envolvidos na batalha é o trapézio invertido da omnisciência dos poucos.” [ênfase no original]

É importante citar a declaração de Lenin inteira para entender o que ela significa e não significa:

“Nós dissemos que pode não haver ainda consciência socialdemocrata entre os trabalhadores. Esta consciência só pode ser levada a eles de fora. A história de todos os países mostra que a classe trabalhadora, exclusivamente por seu próprio esforço, é capaz de desenvolver apenas consciência sindical, por exemplo, ela pode perceber por si própria a necessidade de participar de sindicatos, de lutar contra os empregadores e de se esforçar para fazer o governo aprovar legislação trabalhista suficiente, etc. A teoria do socialismo, entretanto, cresceu a partir das teorias filosóficas, históricas e econômicas que foram elaboradas pelos representantes cultos das classes possuidoras, os intelectuais. De acordo com seu status social, os fundadores do socialismo científico moderno, Marx e Engels, pertenceram à intelectualidade burguesa (intelligentsia). Similarmente na Rússia, a doutrina teórica da socialdemocracia surgiu de forma bem independente do crescimento espontâneo do movimento trabalhista; ela surgiu como resultado natural e inevitável do desenvolvimento de idéias entre a intelligentsia socialista revolucionária.” [ênfase no original]
O Que Fazer?
V.l. Lenin com membros da Liga de Luta pela Emancipação da Classe Trabalhadora de São Petesburgo Dietz Verlag

V.l. Lenin com membros da Liga de Luta pela Emancipação da Classe Trabalhadora de São Petesburgo

Esta não é uma declaração programática, mas antes uma análise histórica com implicações na questão organizativa. O movimento socialista precedeu o desenvolvimento das organizações econômicas de massa do proletariado industrial. O movimento socialista surgiu de dentro das correntes democrático-burguesas revolucionárias (a tradição babouvista representada pelo blanquismo na França e pela Liga dos Justos na Alemanha). Com exceção da Grã-bretanha, os primeiros sindicatos surgiram pela transformação do velho sistemas artesanal baseado em guildas.

Por exemplo, na revolução alemã de 1848 o movimento de sindicatos de massa de Stephan Born, a Irmandade dos Trabalhadores, era largamente baseada na tradicional estrutura de guilda. Os líderes dos sindicatos embrionários eram geralmente figuras tradicionais de autoridade da comunidade plebéia. Ministros metodistas, como o radical tory J. R. Stephens, desempenharam importante papel de liderança no movimento dos trabalhadores Britânicos no começo do século XIX. Padres católicos tiveram um papel semelhante nos primeiros sindicatos franceses, como por exemplo entre os revoltos trabalhadores têxteis de Lyon. Na maioria dos países o crescimento do movimento de trabalhadores socialistas resultou da vitória política da intelligentsia revolucionária contra os líderes tradicionalistas das primeiras organizações operárias. Quando Lenin escreveu O Que Fazer?, as organizações econômicas de massa da classe trabalhadora russa eram os sindicatos liderados pela polícia (zubatovitas), cujo mais proeminente líder era o padre Gapon.

Lenin era um dialético que entendia que a consciência e liderança da classe trabalhadora passava historicamente por mudanças qualitativas. Com a importante exceção dos Estados Unidos, o economicismo sindical (associado com ilusões burguesas liberais e obscurantismo religioso) não é mais a ideologia dominante do proletariado mundial. Nos países capitalistas avançados, é socialista reformista, levada a diante pelos atuais socialdemocratas e burocracias trabalhistas stalinistas, que grudam a classe trabalhadora à ordem burguesa. Em países atrasados, nacionalismo populista com coloração socialista (por exemplo, Perón, Násser) é a forma característica da dominação ideológica burguesa sobre as massas trabalhadoras.

Na Rússia de 1902, uma pequena e homogênea vanguarda marxista, composta por intelectuais saídos de sua classe, com uma fina camada de trabalhadores avançados, foi capaz de fazer a massa dos trabalhadores romper com o sindicalismo policial e com a Igreja Ortodoxa. Hoje é necessária uma vanguarda trotskista internacional, necessariamente composta em seus primeiros estágios por intelectuais saídos de sua classe, com relativamente poucos trabalhadores avançados, para fazer a classe trabalhadora do mundo romper com a dominação do reformismo socialdemocrata e stalinista e com o nacionalismo populista.

Em sentido exatamente oposto ao de Cliff, O Que Fazer? não pode ser considerado como o posicionamento leninista definitivo sobre a questão do partido. Apesar da angularidade dessas formulações, a polêmica obra de 1902 não vai além dos limites da socialdemocracia ortodoxa anterior a 1914. Se esse trabalho tivesse significado uma quebra radical com a socialdemocracia, Plekhanov, Martov, etc., nunca o teriam aprovado. Foi apenas depois do racha em 1903 que Martov, Axelrod e outros líderes mencheviques descobriram em O Que Fazer? alegadas concepções substituístas e blanquistas. Foi a atitude intransigente de Lenin na prática contra o oportunismo, espírito de círculo de debate e todos os outros obstáculos para construir um POSDR revolucionário que causou o racha menchevique, não particularmente as ideias presentes em O Que Fazer?. Se Cliff acha O Que Fazer? leninista demais para o seu gosto, é porque sua hostilidade ao bolchevismo é tão forte que ele rejeita Lenin mesmo quando o último era ainda um revolucionário socialdemocrata. Na realidade a obra de 1902 é uma antecipação, não uma exposição completamente acabada do comunismo pós-1917.

É comum na esquerda considerar O Que Fazer? como uma declaração leninista definitiva sobre a questão do partido. Por exemplo, o americano da corrente de Schatman, Bruce Landau, em uma revisão crítica da biografia de Cliff (Revolutionary Marxist Papers Num. 8), concentra-se no período do Iskra. Ele justifica seu foco estreito citando Trotsky a respeito da elaboração de Lenin:

“Foi precisamente durante este curto tempo que Lenin se tornou o Lenin que seria para sempre. Isso não significa que ele não evoluiu posteriormente. Ao contrário. Ele cresceu em tamanho … até Outubro e mais além; mas as condições desse crescimento já estavam realmente dadas.”
Sobre Lenin: Anotações para uma Biografia (1924)

Trotsky aqui se refere ao desenvolvimento da personalidade política de Lenin, não de suas idéias e suas expressões programáticas. O período decisivo para o desenvolvimento da doutrina comunista leninista foi entre 1914 e 1917, não 1900-1903.

Lenin

Bolchevismo vs. Menchevismo: o Racha de 1903

O segundo congresso do POSDR, realizado em Bruxelas e posteriormente em Londres em Julho e Agosto de 1903, deveria ser a culminância do projeto do grupo do Iskra para criar um partido centralizado baseado num programa compreensível. (Em parte por causa da repressão, o congresso formal de fundação do POSDR em 1898 não modificou a natureza da socialdemocracia russa de ser um movimento de círculos de debate locais). Os economicistas não foram excluídos do congresso, mas ele foi arranjado de tal forma que o grupo do Iskra seria uma maioria decisiva. O grupo do Iskra contava com cerca de dois terços dos 46 delegados do segundo congresso. Do terço restante, cerca de metade eram anti-iskraistas. Esses consistiam de uns poucos economicistas proeminentes (Martynov, Akimov) e a Liga (Bund) Judaica seminacionalista, que reivindicava ser o único representante do proletariado judeu e exigia um partido federativo.

Na primeira fase do congresso, uma maioria iskraista sólida aprovou sua linha. O grupo do Iskra, incluindo futuros mencheviques, votou unanimemente por um programa que incluía elementos posteriormente muito característicos do leninismo. Por exemplo, a seção “Sobre a Luta Sindical” contém a seguinte passagem:

“Até onde essa luta se desenvolva isolada da luta política do proletariado levada pelo partido socialdemocrata, ela leva à fragmentação das forças proletárias e à subordinação do movimento dos trabalhadores aos interesses das classes proprietárias.”
– Robert H. McNeal, Ed., Resoluções e Documentos do Partido Comunista da União Soviética (1974)

Entretanto, por baixo da aparentemente sólida frente do grupo do Iskra, haviam consideráveis tensões. Uma potencial polaridade era entre Lenin e Martov, que era consistentemente mais conciliatório com os elementos não iskraistas e anti-iskraistas da socialdemocracia russa. Até mesmo antes do congresso, Martov era amplamente conhecido como um iskraista “leve” e Lenin como um “rígido”. Consequentemente, aqueles apoiadores do Iskra que eram a favor de um papel maior para os não-iskraistas num partido unitário tinham Martov como seu líder natural; aqueles desejosos de que os iskaistas mantivessem um controle mais apertado do partido tinham Lenin.

As tensões entre os “rígidos” liderados por Lenin e os “leves” liderados por Martov se manifestou através de uma série de disputas menores desde o começo do congresso. Como é bem conhecido, essa tensão explodiu sobre o primeiro parágrafo das regras que definiam a admissão de membros. O rascunho de Martov definia um membro como quem “presta assistência pessoal ao partido em uma das organizações da qual faça parte”. O critério de admissão de Lenin era “por participação pessoal em uma das organizações do partido”.

A definição mais seleta de Lenin sobre a qualidade de membro foi motivada tanto por um desejo geral de excluir oportunistas (que eram menos passíveis de aceitar os rigores e perigos de uma participação organizativa integral) quanto por um desejo de afastar os diletantes que tinham sido atraídos para a socialdemocracia russa precisamente por causa da sua natureza frouxa de círculos de debate. Interessantemente, foi Plekhanov que ressaltou o aspecto anti-oportunista de um partido mais seleto, enquanto Lenin deu maior ênfase a aspectos de consideração mais prática e conjuntural. Aqui está o centro do argumento de Plekhanov:

“A maior parte da intelligentsia vai ter medo de entrar, contaminados como estão com o individualismo burguês, mas isso fará bem, já que esses indivíduos burgueses geralmente consistem em representantes de todos os tipos de oportunismo. Os oponentes do oportunismo deveriam votar então pelo projeto de Lenin, que fecha a porta da sua entrada para dentro do partido.”
– citado em Leopold H. Haimson, Os Marxistas Russos e as origens do bolchevismo (1955)

Lenin interviu sobre algo em nível diferente:

“A raiz do erro cometido por aqueles que defendem a formulação de Martov é que eles não somente ignoram um dos maiores males da vida do nosso partido, como também o santificam. O mal é que, em um tempo em que o descontentamento político é quase universal, quando as condições requerem que nosso trabalho seja realizado em completo sigilo, e quando a maioria de nossas atividades tem de ser confinadas a círculos secretos ou até mesmo a reuniões privadas, é extremamente difícil, quase impossível, na verdade, para nós distinguir aqueles que apenas falam daqueles que cumprem suas tarefas. Dificilmente há outro país no mundo onde a confusão entre essas duas categorias é tão comum e tão produtora de tais problemas sem limites como na Rússia…. Seria melhor se dez daqueles que cumprem suas tarefas ficassem fora do partido … do que se um daqueles que apenas falam tivesse o direito e a oportunidade de ser membro do partido. Esse é um principio que me parece indiscutível, e que me obriga a lutar contra Martov” [nossa ênfase]
– “Segundo Discurso na Discussão sobre as Regras do Partido” (15 de Agosto de 1903)
Leon Trotsky Penguin Books

Leon Trotsky

Com o apoio dos economicistas, membros do Bund e centristas, a formulação de Martov foi aprovada. Entretanto, os economicistas e membros do Bund judaico logo em seguida deixaram o congresso quando este se recusou a aceitar os seus respectivos apelos organizacionais. Isso deu aos “rígidos” de Lenin uma maioria apertada. O racha decisivo ocorreu a respeito da eleição do corpo editorial do Iskra. O antigo conselho editorial continha quatro apoiadores “leves” de Martov e mais Lenin e Plekhanov. Lenin propôs que o corpo editorial fosse reduzido para três membros com ele e Plekhanov formando uma maioria “rígida”. Essa proposta causou um problema altamente emocional já que os veteranos, Axelrod e Zasulich, eram queridinhos sentimentais no partido. Quando a proposta de Lenin foi aprovada, os seguidores de Martov se recusaram a trabalhar tanto no quadro editorial quanto no comitê central.

Um debate muito polêmico é centrado na questão de que Lenin teria informado a Martov seu plano para reduzir o conselho editorial antes do congresso, e Martov teria concordado, etc. A pré-história da luta sobre o conselho editorial é incerta porque aconteceu em discussões privadas. O que é claro é que a falta de disposição de Lenin a se comprometer na questão dependia do resultado sobre o critério para ser militante. Foi definitivamente Lenin que iniciou a luta entre as tendências. Ele se recusou a considerar as diferenças sobre as questão da admissão de membros uma disputa casual, mas insistiu que ela formasse a base de uma representação de maioria-minoria nos órgãos de lideranças do partido.

O período entre o segundo congresso e o começo da revolução de 1905 foi marcado pela erosão da maioria “rígida” de Lenin. Ao longo desse período a maior parte da energia política de Lenin foi dirigida contra aqueles que apoiavam a maioria e que queriam restaurar a unidade, capitulando aos Mencheviques, revertendo as decisões do segundo congresso e liquidando a Tendência Bolchevique.

Os Mencheviques contra-atacaram primeiro num congresso da Liga Estrangeira da Socialdemocracia Russa em outubro de 1903, onde eles conseguiram uma maioria apertada. Quando a Liga se recusou a reconhecer a autoridade dos órgãos de liderança eleitos no segundo congresso, os Bolcheviques se retiraram. Isso finalizou o racha.

Enquanto Plekhanov apoiava a Tendência Bolchevique, ele se privou de um racha definitivo sobre o que parecia ser uma questão puramente organizacional ao invés de uma questão de princípios. Na reunião de uma colateral bolchevique em novembro, ele deixou escapar: “Eu não posso atirar em meus próprios camaradas. É melhor dar um tiro na cabeça do que rachar” (citado em Samuel H. Baron, Plekhanov, Pai do Marxismo Russo [1963]). Daí em diante ele usou sua autoridade para cooptar para o conselho editorial do Iskra os quatro apoiadores de Martov do conselho antigo; Lenin se retirou em protesto.

Durante 1904, um comitê central composto apenas por bolcheviques, ao qual Lenin se juntou após sair do Iskra, tomaria o rumo oposto de Plekhanov. Lenin, acreditando que seus apoiadores eram mais fortes entre os membros do comitê central na Rússia do que entre o meio mais intelectual no exílio, chamou um novo congresso do partido para restabelecer sua maioria e recapturar o agora órgão de informação menchevique, o Iskra. O comitê central se opôs a um novo congresso, cooptou três mencheviques e efetivamente expulsou Lenin daquele órgão.

No fim de 1904, Lenin rompeu completamente com os órgãos centrais oficiais do partido e estabeleceu um comitê central realmente bolchevique chamado Escritório dos Comitês da Maioria. No começo de 1905, os Bolcheviques criaram seu próprio órgão, o Vperyod.

A lógica da disputa de tendências levou os Mencheviques à direita; gradualmente, eles repetiram as políticas dos derrotados economicistas. Martov e Plekhanov escreveram artigos de autocrítica sobre o velho Iskra, declarando que tinham sido unilaterais (em outras palavras, leninistas) nos seus ataques aos economicistas. A fusão orgânica dos Mencheviques e economicistas foi assinalada pela cooptação de A.S. Martynov para o conselho editorial do novo Iskra.

Os leninistas viram sua luta contra os mencheviques tanto prática quanto organizativamente, como uma repetição da luta dos iskraistas contra os economicistas. Um dos braços direitos de Lenin, Lyadov, instruiu um apoiador dos Bolcheviques no fim de 1904 a refazer a campanha contra os economicistas.

“Nós não estamos aqui para deixar o partido, mas para lutar por tudo que vale a pena…. Nós devemos conquistar toda a Rússia [leia-se os comitês] apesar das instituições centrais, e nós devemos fazer isso do mesmo modo como o Iskra fez uma vez. Nós temos que repetir o trabalho do Iskra e completá-lo.”
– citado em J. L. H. Keep, O Nascimento da socialdemocracia na Rússia (1963)

No começo de 1905, Lenin estava convencido de que a liderança dos Mencheviques era incorrigível e que eram organizativamente oportunistas sem princípios, e declarou um racha completo. Em contraste com a política quanto aos economicistas, Lenin opôs a permissão para que os líderes mencheviques participassem de um novo congresso do partido, no qual ele tinha a intenção de fundar um Partido Bolchevique:

“Os centros [mencheviques] podem e devem ser convidados, mas lhes garantir direito de voto é, eu repito, loucura. Os centros, é claro, não virão ao nosso congresso de forma alguma; mas porque lhes dar uma nova chance de cuspir na nossa cara? Por que essa hipocrisia, esse jogo de esconde-esconde? Nós falamos do racha de forma aberta, nós chamamos os seguidores do Vperyod para um congresso, nós queremos organizar um partido do Vperyod, e nós queremos romper imediatamente com quaisquer e com todas as conexões com os desorganizadores e ainda assim, temos a lealdade perturbando nossos ouvidos, nos chamando a agir como se um congresso de reconciliação do Iskra com o Vperyod fosse possível.” [ênfase no original]
– “Carta para A.A. Bogdanov e S.I. Gusev”, 11 de fevereiro de 1905

Como Lenin projetou, os Mencheviques boicotaram o terceiro congresso (todo composto por Bolcheviques) ocorrido em Londres em abril de 1905 e deram brecha ao agrupamento de seus próprios rivais.

O que leninismo significava em 1904? Acima de tudo representava um firme comprometimento com a socialdemocracia revolucionária, particularmente com o papel de liderança de um partido proletário na luta contra o czarismo absolutista. Além disso, representava uma atitude intransigente com relação aos oportunistas declarados, como os líderes economicistas, e uma atitude de remover esperanças na sua possível conversão para as políticas revolucionárias. Lenin estava comprometido com um partido centralizado, disciplinado e por consequência intransigentemente hostil com a característica de círculos de debate amplos do movimento socialdemocrata russo. A não ser no critério de aceitação de membros, essas diferenças entre os Bolcheviques de 1904 e os Mencheviques eram difíceis de serem expressas como princípios contrários. Elas se manifestaram ao redor de problemas organizativos concretos e pareceram para a maioria dos que estavam de fora (como Kautsky) representar diferenças de grau muito mais do que diferenças de princípio.

A Polêmica Menchevique de Trotsky

Entre as numerosas críticas anti-Lenin em 1903-04, o texto de Trotsky “Nossas Tarefas Políticas” foi muito menos significante que aqueles de Axelrod, Plekhanov e Luxemburgo. Entretanto, por causa da autoridade que Trotsky viria a ter como um grande revolucionário, vários reformistas e centristas dão vida nova à sua polêmica de 1904. Tony Cliff, líder de longa data do Socialistas Internacionais britânicos (agora Partido Socialista dos Trabalhadores), devotou um ensaio inteiro à “profecia” de Trotsky de que as concepções organizativas de Lenin levariam o partido a “substituir por si próprio as classes trabalhadoras” (“Trotsky sobre substituísmo”, International Socialism, Outono de 1960; reimpresso na coleção do Socialistas Internacionais, Partido e Classe [Londres]). Em particular, esses socialdemocratas de esquerda, alegando que Trotsky previu que o leninismo leva ao stalinismo, invariavelmente citam a passagem a seguir:

“Na política interna do partido, esses métodos [leninistas], como nós veremos, levam os organizadores do partido a substituir o partido em si próprio, o comitê central [a substituir] os organizadores do partido e finalmente um ditador [a substituir] o comitê central.”
– De “Nossas Tarefas Políticas”, na seção Leon Trotsky, Escritos sobre a Organização Revolucionária (Hamburgo, 1970)

Por outro lado, os stalinistas exploraram o “Nossas Tarefas Políticas” para argumentar que a hostilidade de Trotsky à burocracia soviética não era nada além do que a expressão de um menchevismo regenerado.

Além de uma grande dose de hostilidade subjetiva em direção a Lenin motivada por um apego sentimental aos pioneiros do marxismo russo, a polêmica de Trotsky, como a de Luxemburgo, é baseada numa concepção ultra-kautskista sobre a questão do partido. Ele vê as tarefas do partido como a de elevar toda a classe a uma consciência socialdemocrata através de um processo longo e pedagógico:

“Um método consiste em tomar o livre pensamento do proletariado, como uma substituição política do proletariado; o outro consiste de educação política do proletariado, sua mobilização política, para exercer certa pressão sobre a vontade de todos os grupos e partidos políticos….
“O partido é baseado no dado nível de consciência política do proletariado, e intervêm em cada grande evento político com o objetivo de transferir a linha de desenvolvimento na direção dos interesses do proletariado; e, ainda mais importante, com o objetivo de elevar o nível de consciência, para então se basear num nível de consciência aumentado e novamente usa-lo para alcançar seu duplo objetivo.” [ênfase no original]

Trotsky aqui é altamente influenciado por Axelrod, frequentemente citado na polêmica, que nesse momento decidiu chamar por um inclusivo, não-partidário “congresso dos trabalhadores”. Isso teria como efeito a liquidação do frágil e iniciante POSDR.

Adiar a luta revolucionária pelo poder até que a classe trabalhadora por inteiro tenha alcançado uma consciência socialista é relegá-la ao “dia em que os porcos criarem asas”; no capitalismo, a classe trabalhadora em sua esmagadora maioria não pode transcender completamente a influência ideológica da burguesia. O partido revolucionário de vanguarda deve liderar as massas dos trabalhadores ativos na luta, mas entre esses trabalhadores há muitos nos quais as convicções socialistas serão parciais, inconsistentes e episódicas.

Na sua grandiosa polêmica anti-menchevique desse período “Um Passo para Frente, Dois Passos para Trás” (maio de 1904), Lenin responde sucintamente à posição de Trotsky/Axelrod:

“O partido, como a vanguarda da classe trabalhadora, não deve ser confundido, então, com a classe como um todo. E o camarada Axelrod é culpado apenas desta confusão (que é característica do nosso economicismo em geral)….
“Nós somos o partido de uma classe, e dessa forma quase toda a classe (e em tempos de guerra, em período de guerra civil, a classe inteira) deveria agir sob a liderança do nosso partido, deveria se aproximar do partido o máximo possível. Mas seria “seguidismo” achar que a classe inteira, ou quase a classe inteira, pode algum dia elevar-se, ainda no capitalismo, ao nível de consciência e atividade da sua vanguarda, do seu partido socialdemocrata.” [ênfase no original]

Deve ser notado que a formulação de Lenin das relações classe-partido ainda não romperam completamente com o “partido de toda a classe” kautskista, uma vez que ele obviamente pressupõe um único partido baseado no proletariado.

Não é substituísmo um partido revolucionário liderar – através de sindicatos, comitês de fábrica, conselhos operários, etc – as massas de trabalhadores que não são conscientemente socialistas. Isso é precisamente a tarefa da vanguarda revolucionária. Substituísmo é quando a vanguarda se envolve em ações militares contra a burguesia sem o apoio das massas não-partidárias. Substituísmo se manifesta em golpismo, terrorismo, guerrilheirismo, dualismo sindical ou ações isoladas durante uma greve geral (como a ação alemã do março de 1921). Apesar de repetidas acusações mencheviques de blanquismo, os Bolcheviques de Lenin não engajaram em tais aventureirismos. Na véspera da Primeira Guerra Mundial os Bolcheviques tinham se tornado o partido de massa do proletariado industrial russo, superando de longe os mal-organizados Mencheviques díspares.

De qualquer forma, aqueles que usam a polêmica antiga de Trotsky com o leninismo devem acertar as contas com a própria renuncia posterior de Trotsky e crítica a suas posições mencheviques e conciliatórias naqueles anos. Em Minha Vida (1929) ele escreveu sobre o congresso de 1903 do POSDR:

“Meu rompimento com Lenin ocorreu no que pode ser considerado um terreno 'moral' ou até mesmo pessoal. Mas isso era meramente na superfície. No fundo, a separação era de natureza política e meramente se expressou no campo dos métodos organizativos. Eu me considero um centralista. Mas não há dúvida de que naquele tempo eu não compreendia completamente que o partido revolucionário necessitaria de um centralismo intenso e imperioso para liderar milhões de pessoas numa guerra contra a antiga ordem.”

Trotsky nunca autorizou uma reimpressão de “Nossas Tarefas Políticas”, e ela foi explicitamente excluída da edição russa de seus trabalhos publicada antes da usurpação stalinista.

Por Trás da Polêmica Anti-leninista de Luxemburgo

O texto de Rosa Luxemburgo “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”, publicado no jornal teórico do SPD, Neue Zeit, e no Iskra menchevique, é provavelmente a mais intrinsecamente significativa das polêmicas anti-Lenin seguidas ao racha de 1903. Ela se afasta das questões imediatas e das recriminações pessoais do racha, e ela não cai num clima de unitarismo superficial. As diferenças de Luxemburgo com Lenin existiam tanto no nível dos problemas, tarefas e perspectivas do movimento russo quanto no da natureza da socialdemocracia em geral. Tanto no caso russo quanto no geral, essas diferenças se concentraram na natureza do oportunismo e como combatê-lo.

Suas diferenças sobre o oportunismo socialdemocrata na Rússia podem ser brevemente expressas no que se segue. Antes da revolução de 1905, Lenin via o maior perigo oportunista na adaptação ao czarismo absolutista; Luxemburgo via na subordinação do proletariado russo à democracia burguesa revolucionária fora do poder. Para Lenin, um oportunista socialdemocrata era um diletante pronto a fazer as pazes pessoalmente com a sociedade czarista, e talvez um aspirante a oficial sindical. Para Luxemburgo, um oportunista socialdemocrata era um demagogo radical burguês lutando na verdade por poder governamental, uma versão russa do líder francês radical Georges Clemenceau, um ex-blanquista.

Para Lenin entre 1901 e 1904, e para a tendência do Iskra como um todo, a maior expressão do oportunismo socialdemocrata russo era o economicismo, um amálgama de agitação sindical mínima, passiva adaptação ao czarismo liberal, regionalismo organizativo e funcionamento individualista. Luxemburgo não era menos oposta ao puro e simples sindicalismo do que Lenin, mas evidentemente não considerava o economicismo como uma corrente oportunista séria na Rússia, como um sério concorrente pela influência sobre a classe operária. Assim como Lenin tomou o espírito de círculos de debate e o individualismo anarquizante como seus maiores inimigos no nível organizativo, Luxemburgo parecia considerar esses traços um custo indireto inevitável de um determinado estágio do movimento socialdemocrata na Rússia. Quando o proletariado socialista é pequeno, acreditava Luxemburgo, um movimento frouxo de propaganda de círculos de debate locais é o normal e, de certo modo, uma expressão organizativa saudável da socialdemocracia:

“Como realizar uma transição a partir do tipo de organização característica de um estágio preparatório do movimento socialista – geralmente simbolizado por grupos locais e clubes desconexos – para a unidade de um corpo nacional grande, adequado para ações políticas organizadas sobre todo o vasto território regido pelo Estado russo? Esse é o problema específico com o qual a socialdemocracia russa tem se atrapalhado a algum tempo.
“Autonomia e isolamento são as características mais pronunciadas da velha forma organizacional. É, dessa forma, compreensível o porquê de o slogan daqueles que querem ver uma organização inclusiva a nível nacional ser 'Centralismo!'…
“As condições indispensáveis para a realização do centralismo socialdemocrata são: 1. A existência de um grande contingente de trabalhadores educados na luta política. 2. A possibilidade para os trabalhadores de desenvolver sua própria atividade política através de influência direta na vida pública, numa imprensa do partido, em congressos públicos, etc.
“Essas condições ainda não estão completamente formadas na Rússia. A primeira – uma vanguarda proletária consciente de seus interesses de classe e capaz de dirigir a si própria em atividade política – está apenas agora emergindo na Rússia. Todos os esforços da agitação socialista e da organização deveriam ter o objetivo de acelerar a formação de tal vanguarda. A segunda condição pode ser alcançada somente sob um regime de liberdade política” [ênfase nossa] – Luxemburgo, “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”

A crença de Luxemburgo numa transição gradual de um movimento de círculos locais até um partido unitário e centralizado não era apenas contraposta ao leninismo, mas logicamente a posicionava fora e à direita do grupo do Iskra em geral antes do racha.

A visão expressa acima está em certo desacordo com a verdadeira prática organizativa de Luxemburgo na parte polonesa do império russo. O Socialdemocracia do Reino da Polônia e da Lituânia (SDRPeL) de Luxemburgo e Jogiches era uma organização de propaganda muito pequena, porém altamente centralizada. E, ao contrário dos Bolcheviques de Lenin, o SDRPeL de Luxemburgo cometeu sérios erros sectários e ultra-esquerdistas (veja “Lenin vs. Luxemburgo Sobre a Questão Nacional”, Workers Vanguard Num.150, 25 de março de 1977).

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A menção ao SDRPeL é um lembrete de que não se pode simplesmente tomar “Problemas Organizativos da socialdemocracia Russa” como uma prova dos fatos. Embora por motivações muito diferentes, a socialdemocracia polonesa de Luxemburgo era tão protetora de sua autonomia organizativa quanto era o Bund. O SDRPeL mandou dois observadores ao segundo congresso do POSDR, onde eles negociaram uma autonomia larga dentro de um partido unitário russo. A defesa por Lenin de um partido centralizado de todos o socialdemocratas no império russo desafiava, ao menos em princípio, as prerrogativas organizativas altamente valorizadas de Luxemburgo no SDRPeL.

Luxemburgo procurava o oportunismo da socialdemocracia russa no sentido completamente oposto ao que procurava Lenin. Luxemburgo temia que a intelligentsia da socialdemocracia russa desse nascimento a um parido burguês radical usando retórica socialista, e então suprimisse o desenvolvimento de consciência política de classe entre o proletariado russo. Com esse prognóstico, Luxemburgo viu no centralismo de Lenin, mais do que no menchevismo a mais provável fonte de oportunismo (leia-se adaptação à burguesia). A insistência de Lenin sobre o papel de liderança da socialdemocracia na luta contra o absolutismo e sobre o papel de liderança de revolucionários profissionais no partido pareceu a Luxemburgo (e não apenas a ela) como a característica de um partido radical burguês.

De fato, era comum em círculos mencheviques nesse período acusar os leninistas de serem radicais burgueses em mantos socialdemocratas. Os líderes mencheviques, Potresov, por exemplo, associaram os Bolcheviques aos radicais de Clemenceau. Luxemburgo viu no “jacobinismo” de Lenin o desejo inconsciente de intelectuais radicais burgueses de suprimir a sua base na classe trabalhadora após derrubar o czarismo e chegar ao poder. Ela defendeu um movimento socialdemocrata amplo e frouxo como um freio contra os demagogos burgueses radicais como o ex-blanquista Clemenceau:

“Se nós assumirmos o ponto de vista reivindicado como seu próprio por Lenin e nós temermos a influência de intelectuais no movimento proletário, nós não podemos conceber perigo maior ao partido russo do que o plano organizativo de Lenin. Nada irá com maior certeza escravizar um jovem movimento operário à fome de poder de uma elite intelectual do que esse casaco burocrático apertado….
“Não vamos nos esquecer de que a revolução que se aproxima de ocorrer na Rússia será uma revolução burguesa e não proletária. Isso modifica radicalmente todas as condições da luta proletária. Os intelectuais russos, também, irão rapidamente ficar impregnados com a ideologia burguesa. A socialdemocracia é no presente momento o único guia do proletariado russo. Mas no dia seguinte ao da revolução, nós veremos a burguesia, e acima de tudo os intelectuais burgueses, buscarem usar as massas como um degrau para sua dominação.
“O jogo dos demagogos burgueses será facilitado se, no presente estágio, a ação espontânea, iniciativa e noção política das seções avançadas da classe trabalhadora for prejudicada em seu desenvolvimento por um protetorado restritivo e um comitê central autoritário.” [ênfase nossa]
Idem.

Uma premissa central da polêmica anti-leninista de 1904 de Luxemburgo era que o absolutismo czarista seria logo substituído por uma democracia burguesa (“a revolução que logo acontecerá na Rússia será burguesa”). Foi por isso que ela antecipou que demagogia parlamentarista radical seria a a principal expressão do oportunismo socialdemocrata. A revolução de 1905 provou que o prognóstico de Luxemburgo estava errado. A revolução demonstrou que o liberalismo burguês era totalmente covarde e impotente. Ela também demonstrou que a socialdemocracia era a única força revolucionária-democrática no império russo.

Durante a revolução, Luxemburgo condenou os Mencheviques por seguirem os monarquistas constitucionais (Cadetes) e se moveu para perto dos Bolcheviques. Concordando com Lenin sobre o papel de liderança do partido proletário na revolução anti-czarista, o SDRPeL de Luxemburgo e Jogiches formou uma aliança com os Bolcheviques em 1906, uma aliança que durou até 1912 e deu a Lenin a liderança do formalmente unitário POSDR. No quinto congresso do POSDR em 1907, Luxemburgo defendeu a estreiteza e intransigência dos Bolcheviques, embora com algumas reservas “macias”.

“Vocês camaradas da ala direita reclamam amargamente sobre a estreiteza, a intolerância, a tendência em direção a uma concepção mecanicista nas atitudes dos Bolcheviques. E nós concordamos com vocês…. Mas vocês sabem o que causa essas tendências desconfortáveis? Para qualquer um que esteja familiar com as condições partidárias de outros países, essas tendências são muito bem conhecidas: é a típica atitude de uma seção socialista que é obrigada a defender o interesse independente de classe do proletariado contra outra seção igualmente forte. Rigidez é a forma adotada pela socialdemocracia para alcançar seu fim quando os demais meios tendem a transformá-la numa geléia amorfa, incapaz de manter uma linha consistente sob a pressão dos acontecimentos.”
– citado em J.P. Nettl, Rosa Luxemburgo (1966)

Liberais e atuais socialdemocratas suprimiram sistematicamente referências à aliança próxima de Luxemburgo com o bolchevismo da revolução de 1905 até 1912 e novamente do princípio da Primeira Guerra Mundial até o seu assassinato durante o levante de Spartacus em 1919. Eles, entretanto, exploraram completamente a sua polêmica de 1904 a serviço de um anti-comunismo. Assim, a amplamente difundida coleção Ann Arbor Paperbacks para estudo do comunismo e do marxismo fez uma reimpressão de “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa” sob o título calunioso de “Leninismo ou Marxismo?”.

Não menos perniciosos têm sido os esforços de muitos reformistas de esquerda e centristas para apresentar o partido leninista de vanguarda com centralismo democrático como válido apenas para países atrasados, enquanto solidarizam com a posição anti-bolchevique de Luxemburgo em 1904 para países capitalistas avançados. Nós já dissemos que esta foi exatamente a posição do movimentista-reformista Tony Cliff, antes de o leninismo “linha dura” entrar na moda entre a juventude radical no fim dos anos 1960.

É de se esperar que um revisionista de marca maior como Cliff solidarize com Luxemburgo contra Lenin. O que não é de se esperar é que uma organização trotskista (ou seja, leninista) ostensivamente ortodoxa adote a linha “luxemburguista” como válida para países avançados. Ainda assim isso é exatamente o que faz a Organização Comunista Internacionalista francesa (OCI). Em uma introdução para uma edição francesa popular de O Que Fazer?, o líder da OCI Jean-Jacques Marie rejeita a defesa de Lenin de uma vanguarda democraticamente centralizada como peculiar para a Rússia no começo do século XX, e afirma que a posição de 1904 de Luxemburgo é apropriada para um país avançado com um movimento operário altamente desenvolvido.

“A rigidez centralista de O Que Fazer? faz sentido nas características particulares do proletariado russo; quer dizer, de um proletariado nascente que havia acabado de sair do interior impregnado com os costumes da Idade Média, falta de estudo, esmagado por condições de existência similares àquelas do proletariado francês ou inglês no começo do século XIX….
“O papel da intelligentsia revolucionária como um fator de organização e consciência, da forma com que Lenin retrata, é proporcional ao nível relativo de atraso de um proletariado legalmente privado de qualquer forma que seja de sindicalismo ou organização política.
“Assim, o conflito entre Lenin e Rosa Luxemburgo, por exemplo, aparece – se deixados de lado seus aspectos pessoais – como a expressão da enorme diferença que separava um dos mais deseducados proletariados da Europa e o proletariado alemão, naquele tempo o mais poderoso e politicamente mais vigoroso e maduro do mundo….
“Se a luta pela revolução socialista é internacional por essência, suas formas imediatas e também os meios de chegar a ela dependem de inúmeros fatores, entre eles as condições nacionais em que cada partido se desenvolve.”
– introdução ao O Que Fazer? (Paris, 1966)

O ponto de vista que J.J. Marie atribui aqui a Luxemburgo é tão diametralmente oposto à sua posição real que é difícil acreditar que ele tenha alguma vez lido “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”. Como pudemos ver, a oposição de Luxemburgo ao centralismo leninista para a Rússia era precisamente por causa do pouco desenvolvimento do movimento proletário. Em 1904, Luxemburgo era uma centralizadora e disciplinadora no partido alemão porque a direita revisionista era formalmente uma minoria. E isso é explicitamente declarado em “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”:

“A socialdemocracia deve acabar com o tumulto dos protestadores não-proletários contra a sociedade existente dentro dos limites da ação revolucionária do proletariado….
“Isso só é possível se a socialdemocracia já tiver um núcleo proletário forte, politicamente educado, com suficiente consciência de classe a ponto de ser capaz, como agora na Alemanha, de puxar junto de si, em seu reboque, os elementos saídos de sua classe e pequeno-burgueses que se juntarem ao partido. Nesse caso, maior severidade na aplicação do princípio de centralização e disciplina mais severa, especificamente formulada no estatuto do partido, poderá ser uma efetiva precaução contra o perigo oportunista. É assim que o movimento socialista revolucionário na França se defendeu contra a confusão de Jaures. A modificação da constituição da socialdemocracia alemã nessa direção seria uma medida extremamente oportuna.” [ênfase nossa]

A pressão de Luxemburgo por uma centralização maior no SPD foi bem-sucedida no congresso de Jena dominado pelos radicais em 1905, que adotou uma estrutura organizativa genuinamente centralista. Pela primeira vez os oficiais de cada unidade partidária básica eram chamados à responsabilidade pela executiva nacional. Mais tarde, é claro, o famoso aparato centralizado do SPD foi usado para suprimir a ala esquerda revolucionária liderada por Rosa Luxemburgo.

O ponto central das divergências entre Luxemburgo e Lenin em 1904 e daí em diante não eram quanto ao nível de centralização, mas quanto à natureza do oportunismo e como combatê-lo. A questão do centralismo e da disciplina deriva seu significado apenas em tal contexto.

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A polêmica anti-leninista de Luxemburgo em 1904 foi fortemente condicionada pela frustração por sua vitória essencialmente vazia sobre o revisionismo bernisteiniano. O revisionismo foi formalmente rejeitado pelo SPD, os oportunistas mudaram de rumo e as atividades políticas do partido se mantiveram praticamente as mesmas de antes, num espírito de expectativa passiva. Não muito depois de escrever “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”, Luxemburgo expressou sua desilusão com a luta interna entre frações em geral numa carta (14 de dezembro de 1904) para o socialista de esquerda holandês Henriett Roland-Holst:

“O oportunismo é em todo caso uma planta de pântano, que cresce rapidamente e de forma diversificada nas águas paradas do movimento; num rápido fluxo de água corrente ele morreria por si próprio. Aqui na Alemanha um movimento para a frente é uma necessidade urgente, imediata! E muitos poucos percebem isso. Alguns desperdiçam suas energias em disputas pequenas com os oportunistas, outros acreditam que o automático, mecânico aumento dos números (nas eleições e nas organizações) é um progresso em si mesmo!”
– citado em Carl E. Schorske, Socialdemocracia Alemã 1905-1917 (1955).

A crença de Luxemburgo de que um ascenso de luta de classes iria naturalmente dispersar as forças oportunistas no SPD se provou muito errada. Em 1905, e novamente em 1910, uma linha crescente de agitação de massa contra o sufrágio restrito foi efetivamente suprimida por iniciativa da burocracia sindical. Em 1910 a Neue Zeit, sob a direção de Kautsky, chegou a se recusar a publicar o artigo de Luxemburgo defendendo uma greve geral.

Ao concluir “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”, Luxemburgo desenvolve uma teoria sobre a inevitabilidade do oportunismo e mesmo de fases oportunistas num partido socialdemocrata. Tentativas de preservar completamente o partido contra o oportunismo através de meios organizativos internos só irá, afirma ela, reduzir o partido a uma seita. Aqui jaz a diferença fundamental entre Luxemburgo e Lenin em 1904 e em diante:

“Daqui segue que este movimento pode avançar melhor se posicionando entre os dois perigos pelos quais é constantemente ameaçado. Um é a perda de seu caráter de massa; o outro, o abandono de seu objetivo. Um é o perigo de se reduzir de volta à condição de uma seita; o outro, o perigo de se tornar um movimento de reforma social.
“É por isso que é ilusório, e contrário à experiência histórica, esperar consertar, de uma vez por todas, a direção da luta socialista revolucionária com a adição de meios formais, dos quais se espera que assegurem o movimento operário contra todas as possibilidades de digressão oportunista.
“A teoria marxista nos oferece um confiável instrumento que nos permite reconhecer e combater típicas manifestações de oportunismo. Mas o movimento socialista é um movimento de massa. Seus perigos não são as insidiosas maquinações de indivíduos ou grupos. Eles surgem a partir de inevitáveis condições sociais. Nós não podemos assegurar a nós próprios de ante-véspera contra todas as possibilidades de desvio oportunista. Tais perigos podem ser superados apenas pelo próprio movimento – certamente com a ajuda da teoria marxista, mas apenas após os perigos em questão terem adquirido forma prática tangível.
“Visto desse ângulo, o oportunismo aparece sendo um produto e uma fase inevitável do desenvolvimento histórico do movimento operário.”

Devido a tentativas de elementos semi-sindicalistas e comunistas de ultra-esquerda (por exemplo, “comunistas de conselho”) de reivindicar Rosa Luxemburgo, é frequentemente ignorado que sua polêmica contra Lenin sobre a questão organizativa foi travada em conceitos socialdemocratas ortodoxos. A passagem citada acima é ultra-kautskista ao identificar o partido social democrata com todo o movimento operário. Partindo da premissa do “partido de toda a classe” de Kautsky, a lógica de Luxemburgo é inatacável. Não apenas haverá uma ala oportunista de um partido socialdemocrata, mas deverá haver períodos nos quais a influência dessa ala vai se expandir.

Do ponto de vista alemão, Luxemburgo via que formar um partido leninista significava romper com tendências significativas da classe trabalhadora que estivessem sob liderança e influência oportunista. Essa conclusão anti-socialdemocrata era bloqueada da visão de Lenin pelo estado desorganizado do partido Russo. Ao contrário de Luxemburgo, Lenin não fora confrontado com tendências socialdemocratas oportunistas que tivessem uma base social de massas. Ele acreditava que os Mencheviques fossem uma tendência intelectualista incapaz de construir um movimento de trabalhadores de massa.

Kautsky e Bebel Intervêm para Restaurar a Unidade

Enquanto a polêmica anti-leninista de Luxemburgo é hoje muito mais conhecida, naquele tempo a ativa intervenção pró-unidade da liderança central do SPD, Kautsky e Bebel, foi mais significativa. É importante considerar a intervenção de Kautsky/Bebel para compreender que Lenin construiu um partido revolucionário programaticamente homogêneo na Rússia face a oposição das autoridades líderes da Internacional Socialista.

No começo de 1904, um dos seguidores mais próximos de Lenin, Lydin-Mandelstamm, escreveu um artigo sobre o racha para ser publicado no Neue Zeit de Kautsky. Kautsky se recusou a publicá-lo, e sua resposta a Lydin no meio de março de 1904 é a sua mais antiga declaração escrita sobre o racha. Ele considera o racha completamente injustificável e profundamente irresponsável. Ele também foi astuto o suficiente para reconhecer que foi a intransigência de Lenin quanto à questão organizacional que perpetuou o racha:

“Uma grande irresponsabilidade paira sobre a socialdemocracia russa. Se ela não pode se unir, então ela irá ficar para a história e para o proletariado internacional como um grupo de políticos que, fora as suas dificuldades pessoais e organizacionais de uma natureza muito pequena se comparada à sua grande tarefa histórica … deixou escapar a oportunidade de dar uma golpe no absolutismo russo. Mas Lenin carregaria a responsabilidade por ter iniciado essa discórdia destrutiva.” [nossa tradução]
– citado em Dietrich Geyer, “O Racha partidário russo em comparação à socialdemocracia Alemã 1903-1905”, no International Review of Social History (1958)

Na substantiva questão organizativa que levou ao racha, Kautsky viu “nem uma oposição de princípios entre as necessidades do proletariado e dos intelectuais nem entre democracia e ditadura, mas simplesmente uma questão de adequação”.

Kautsky mandou uma cópia de sua resposta a Lydin à liderança menchevique, que considerou-a imediatamente um apoio ao seu lado. Com a permissão do autor, ela foi publicada no novo Iskra. Numa carta (4 de junho de 1904) para Axelrod, Kautsky aprofundou sua posição pró-menchevique ao ponto de lhes dar conselhos sobre como lidar com Lenin:

“Mas em grande medida as diferenças entre vocês e o outro lado parecem se basear entre mal-entendidos. Não entre vocês e Lenin, que eu considero fora de questão, mas entre vocês e os apoiadores de Lenin na Rússia. Eu tive ao menos a oportunidade de conversar com vários apoiadores de Lenin que vieram da Rússia e não encontrei entre eles pontos de vista que tornariam a cooperação … impossível. Os preconceitos deles contra vocês parecem residir simplesmente em informação mal dada. Se for assim, então uma unificação deverá ser possível, por cima e sobre a cabeça de Lenin, se esses elementos forem tratados de forma cuidadosa”.
Idem.

E, de fato, os Mencheviques procuraram, com algum sucesso, ganhar os bolcheviques mais conciliatórios.

Uma indicação mais pública da posição anti-Lenin de Kautsky foi que a Neue Zeit publicou o “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa” de Luxemburgo sem dissociar a revista das visões nele expressas. Quando Lenin escreveu uma resposta, Kautsky recusou-se a publicá-la sob o argumento de que a Neue Zeit não era a arena apropriada para a luta dos rachas do POSDR. Numa carta (27 de outubro de 1904) para Lenin, ele justificou a publicação do artigo de Luxemburgo argumentando que:

“Eu não publiquei o artigo de Rosa Luxemburgo porque ele tratava das disputas russas mas, por razão contrária a essa. Eu o publiquei porque ele tratava da questão organizativa de forma teórica, e essa questão também é assunto de discussão nossa na Alemanha. As disputas russas são tocadas nele de uma forma que não chamarão atenção ao leitor desinformado. [ênfase no original]
Idem.

Essa última afirmação de Kautsky não é ingênua.

Kautsky aconselhou Lenin a reformular sua resposta em termos mais teóricos caso ele quisesse que ela fosse publicada no órgão alemão. Até onde nós sabemos, Lenin não respondeu. Presume-se que Lenin considerava como decisivas as especificidades do racha do POSDR e não queria mergulhar numa discussão abstrata sobre os princípios de organização.

Em outubro de 1904, August Bebel, venerado presidente do SPD, propôs à liderança menchevique que eles chamassem uma conferência de unidade de todos os grupos presentes no segundo congresso do POSDR. Pouco depois, a liderança alemã pediu por uma conferência bem mais ampla, incluindo os populistas pequeno-burgueses Socialistas Revolucionários e o nacional-libertador Partido Socialista Polonês. Assim, em 1904 a liderança socialdemocrata alemã buscou um bloco, senão um partido, abarcando todas as forças oposicionista ao império czarista à esquerda dos liberais burgueses. Os Mencheviques rejeitaram tal unidade ampla como oportunista. Essa era uma indicação prematura de que os seguidores de Martov não estavam, como Lenin erradamente acreditava, à direita da liderança central do SPD.

Kautsky acreditava que os Mencheviques fossem desejosos de restaurar a unidade, como ele era. Mas o posicionamento pró-unidade dos Mencheviques era em parte uma pose para consumo estrangeiro. Na teoria compromissada com um partido amplo, inclusivo, a liderança menchevique não queria estar na mesma organização que os “rígidos” de Lenin. Em resposta à proposição de Bebel, eles concordaram em chamar uma conferência de “unidade” convidando o Bund, o SDRPeL de Luxemburgo/Jogiches e alguns pequenos grupos socialdemocratas. Mas eles recusaram-se a convidar os leninistas! Nesse tempo, Lenin tinham perdido a liderança formal do POSDR e tinha criado o Escritório dos Comitês da Maioria.

Kautsky agora criticava os líderes mencheviques como divisionistas irresponsáveis. Numa carta (10 de janeiro de 1905) para Axelrod, ele escreveu:

“Eu não entendo porque não convidaram Lenin. Isso pode ser bem justificado em termos formais, mas não se pode ver o problema de maneira tão formal. De um ponto de vista político, a exclusão [de Lenin] do convite me parece um erro. Mesmo que ele não represente formalmente a sua organização em particular. Ele ainda tem um grande apoio, a tarefa de vocês é ganhá-lo junto com seus apoiadores ou então separar esses apoiadores dele…. Na situação atual, que exige uma união de todas as forças revolucionárias, minha visão é de que sua tarefa é lavar ao máximo a conciliação. Se a unidade se demonstrar impossível, então Lenin vai ter se posicionado muito mal, e então vocês poderão prosseguir contra ele com muito mais força e sucesso do que no atual momento, onde o seu conflito parece ser quase somente um simples conflito de autoridade”. [ênfase no original]
Idem.

Em seguida ao massacre do Domingo Sangrento em janeiro de 1905, a liderança do SPD mais uma vez tentou reunificar o movimento socialdemocrata russo. Bebel publicamente se ofereceu para ser árbitro entre as diferenças. A oferta de Bebel foi concluída com uma reprimenda paternalista à socialdemocracia russa:

“As notícias sobre esse racha despertaram grande confusão e definitivo descontentamento na socialdemocracia internacional e todos esperam que, após uma discussão livre, ambos os lados achem uma base comum para lutar contra o inimigo comum”.
– citado em Olga Hess Gankin e H.H. Fisher, Os Bolcheviques e a Guerra Mundial (1940)

Sabendo que Bebel era politicamente próximo deles, o Mencheviques prontamente aceitaram sua proposta. Lenin de fato rejeitou a proposta de unidade. Numa resposta (7 de fevereiro de 1905) ao presidente do partido alemão, ele declarou que não tinha autoridade para aceitar a oferta do árbitro, que teria que ser colocada num novo congresso do partido. Ele então adicionou que tendo em vista a intervenção unilateral de Kautsky, “não vai me surpreender se a intervenção da parte dos representantes da socialdemocracia alemã encontrar dificuldades entre as nossas colunas”.

O terceiro congresso realizado em abril e todo composto por bolcheviques em abril não definiu nenhuma posição sobre a proposta de Bebel, na prática a rejeitando. O espírito autoconfiante dos Bolcheviques e sua relutância em aceitar a tutela alemã é bem expressa pelo delegado Barsov em seu discurso sobre a oferta de Bebel:

“Nossos camaradas alemães são uma força, eles amadureceram através de inexorável e crítica luta interna contra todas as formas de oportunismo nos congressos do partido e outros encontros – e nós devemos amadurecer da mesma forma para desempenhar nosso grande papel, forjando independentemente nossas próprias organizações num partido, não meramente ideologicamente mas na realidade…. Nós devemos nos tornar líderes ativos de toda a classe proletária da Rússia, unindo e organizando a nós próprios imediatamente para a luta contra a autocracia para o glorioso futuro do reino do socialismo”.
Idem.
Lenin

A Revolução de 1905

Durante 1904, a derrota russa na guerra com o Japão provoca um ascenso da oposição liberal burguesa contra a autocracia czarista. Essa mudança significativa no cenário político russo aprofundou as diferenças entre menchevismo e bolchevismo. Atribuindo aos liberais o papel de liderança na revolução anti-czarista que viria, os mencheviques buscavam encorajar a oposição liberal diminuindo o criticismo sobre eles. A atitude conciliatória dos Mencheviques em relação aos liberais marcou uma regressão a um nível ainda mais baixo do que o dos economicistas, restringindo o partido socialdemocrata à defesa de interesses setoriais do proletariado russo.

Lenin atacou de forma afiada essa política liberal-conciliatória em seu artigo de novembro de 1904, “A Campanha do Zemstvo e o Plano do Iskra”, que abriu uma fase mais profunda no conflito bolchevique-menchevique. (Os Zemstvos eram os corpos governamentais locais através dos quais os liberais esperavam reformar o czarismo). O eixo central da polêmica de Lenin é esse:

“Democratas burgueses são por sua própria natureza incapazes de satisfazer essas demandas [democráticas revolucionárias], e estão portanto condenados à indecisão e a morrer no meio do caminho. Criticando essa indecisão, os socialdemocratas continuam incentivando os liberais ao mesmo tempo em que ganham mais e mais proletários e semi-proletários, e parcialmente a pequeno-burguesia também, da democracia liberal para a democracia da classe trabalhadora….
“A oposição burguesa é meramente burguesa e meramente uma oposição porque ela não luta por si própria, porque ela não tem um programa próprio que defenda incondicionalmente, porque ela permanece entre dois combatentes de verdade (o governo e o proletariado revolucionário, cheio de apoiadores na intelectualidade) e tem a esperança de tirar vantagem do desfecho dessa luta.”

Essa diferença sobre o papel da burguesia liberal na revolução anti-czarista era a questão principal dos rivais Mencheviques e Bolcheviques nos encontros em abril de 1905. Partindo da sua premissa de que o partido liberal burguês deveria chegar ao poder com a destruição do absolutismo, os Mencheviques chegavam ao posicionamento de que o partido socialdemocrata, não importasse o quão forte, não deveria derrotar militarmente o governo czarista. Essa política de espera passiva e de segurar no rabo dos liberais foi adotada na forma de resolução na conferência menchevique de abril:

“Sob essas condições, a socialdemocracia deve se esforçar em reter para si mesma, ao longo de toda a revolução, uma posição que vai lhe garantir uma melhor oportunidade de aprofundar a revolução, a qual não a mantivesse numa luta contra as políticas inconsistentes e egoístas dos partidos burgueses, e a qual prevenisse que a revolução perdesse a sua identidade na democracia burguesa.
“Portanto, a socialdemocracia não deveria colocar para si própria o objetivo de exercer ou dividir o poder no governo provisório, mas deve permanecer um partido de extrema oposição revolucionária.”
– Robert H. McNeal, Ed., Decisões e Resoluções do Partido Comunista da União Soviética (1974)

Lenin contrapôs à concepção menchevique a idéia de “ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato”, um conceito mais extensivamente estabelecido em seu livro de julho de 1905, Duas Táticas da socialdemocracia na Revolução Democrática. Lenin parte da premissa de que a burguesia russa era incapaz de levar adiante as tarefas históricas da revolução democrático-burguesa. Entretanto, ele acreditava que um movimento radical populista de base camponesa poderia e iria desenvolver um partido democrático-revolucionário de massas. (Significativamente, Lenin não considerava os Socialistas Revolucionários tal partido. Ele considerava que eles eram um agrupamento “intelectualista” e ainda viciados em terrorismo). A aliança entre o partido democrático-revolucionário de base camponesa e o partido proletário socialdemocrata, incluindo uma coalizão do “governo provisório revolucionário”, iria derrubar o absolutismo e levar em frente o programa radical democrático – o programa “mínimo” do Partido Operário socialdemocrata Russo (POSDR). O núcleo operacional da estratégia de Lenin foi adotada no terceiro congresso do POSDR só composto por bolcheviques:

“Dependendo do alinhamento de forças e outros fatores que não podem ser precisamente definidos de antemão, representantes do nosso partido podem ser autorizados a tomar parte do governo provisório revolucionário para conduzir uma implacável luta contra todas as tentativas contra-revolucionárias e para defender os interesses independentes da classe trabalhadora.”
Idem.
Domingo Sangrento, 9 de janeiro de 1905: trabalhadores marcharam para o Palácio de Inverno para apresentar uma petição ao Czar Nicolau II. Sem avisar, guardas atiraram na multidão matando 300 pessoas e ferindo 3.000. Dietz Verlag

Domingo Sangrento, 9 de janeiro de 1905: trabalhadores marcharam para o Palácio de Inverno para apresentar uma petição ao Czar Nicolau II. Sem avisar, guardas atiraram na multidão matando 300 pessoas e ferindo 3.000.

Ao desenvolver o conceito de “ditadura revolucionária democrática”, Lenin estava primeiramente preocupado em motivar a socialdemocracia russa para um papel político e militar ativo na revolução. Quanto ao futuro destino da “ditadura revolucionária democrática”, Lenin é deliberadamente vago; está claro que ele não a considerava uma forma estável de dominação de classe. Em Duas Táticas, ele afirma:

“A ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato é inquestionavelmente apenas um objetivo socialista transiente, temporário, mas ignorar esse objetivo no período da revolução democrática seria claramente reacionário.”

A futura evolução da sociedade russa a partir da “ditadura revolucionária democrática” seria determinada pelo equilíbrio de força de classe não apenas na Rússia mas por toda a Europa. A formulação de Lenin é portanto uma concepção algébrica. Em seu desfecho mais revolucionário, ela tomaria a forma da “revolução permanente” de Trotsky: uma revolução democrática radical na Rússia acende uma faísca para a revolução proletária européia, que permite a revolução socialista imediata na Rússia. Numa face reacionária triunfante, a “ditadura revolucionária democrática” se torna um episódio revolucionário tal qual a ditadura jacobina de 1793 ou a comuna de Paris de 1871, que torna possível a estabilização de uma dominação democrático-burguesa normal.

No início de 1905, a questão da dinâmica política da revolução havia superado a estreita questão organizativa como o conflito central entre bolchevismo e menchevismo. De fato, o criticismo aos Mencheviques adotado no congresso Bolchevique de abril de 1905 nem sequer menciona o ponto que causou o racha originalmente. Ao invés disso, condenava os Mencheviques por economicismo e seguidismo liberal:

“… uma tendência geral de diminuir o significado da consciência, a qual eles subordinam à espontaneidade, na luta proletária…. Em problemas táticos [os Mencheviques] manifestam um desejo de estreitar a visão de trabalho do partido; falam contra a posse pelo partido de táticas completamente independentes em relação ao partidos liberais burgueses, contra a possibilidade e o caráter desejável de que nosso partido tome um papel organizacional no levante popular, e contra a participação do partido sob quaisquer condições num governo provisório democrático revolucionário.”

Como é bem conhecido, nem todos os líderes mencheviques de 1903 tornaram-se seguidistas dos liberais em 1905. Durante 1904, o jovem Trotsky desenvolveu a teoria da “revolução permanente” como aplicável à Rússia. Devido ao desenvolvimento desigual da Rússia, nenhuma força democrático-burguesa revolucionária, incluindo um partido populista radical de base camponesa, iria emergir para derrubar o absolutismo. Ao levar em frente a revolução anti-absolutista, o partido proletário seria forçado a tomar o poder de Estado e também a introduzir o início da socialização. A não ser que a revolução proletária russa se estendesse para a avançada Europa capitalista, o Estado operário atrasado seria inevitavelmente destruído pela reação imperialista. A “revolução permanente” de Trotsky o posicionou à esquerda dos leninistas na questão da estratégia revolucionária, mas, com exceção de um momento histórico em 1905, ele permaneceu uma figura isolada no movimento socialdemocrata da Rússia pré-guerra.

Revolução e Recrutamento em Massa

As diferenças com os Mencheviques sobre a natureza da revolução russa enfraqueceram, mas não eliminaram, os conciliadores bolcheviques, que queriam uma reunificação do POSDR. Entretanto, o ascenso revolucionário produziu uma nova divisão no campo bolchevique, e desta vez Lenin se encontrou tomando uma posição que não lhe era familiar na questão organizativa.

A radicalização de massa, particularmente após o Domingo Sangrento, 9 de janeiro de 1905, produziu dezenas de milhares de jovens trabalhadores militantes que desejavam se unir a um partido revolucionário socialista, a se juntar aos Bolcheviques. Entretanto, habituados a uma pequena rede secreta, muitos “homens dos comitês” Bolcheviques (os quadros que tinham construído núcleos socialdemocratas fortes nas difíceis condições da clandestinidade) resistiram à mudança radical na natureza de sua organização e no seu funcionamento. Eles se opuseram a uma política de recrutamento de massa e insistiram em manter um longo período de acompanhamento como um critério prévio para ser considerado membro.

Lenin se opôs inflexivelmente a esse conservadorismo do aparato e buscou transformar os Bolcheviques de uma organização com trabalho de agitação para um partido proletário de massa. Desde cedo, em fevereiro de 1905, num artigo chamado “Novas Forças e Novas Tarefas”, Lenin expressou preocupação com que a radicalização das massas estivesse muito além do crescimento da organização bolchevique:

“… nós devemos aumentar consideravelmente a admissão de membros em todo o partido e em órgãos a ele conectados para sermos capazes de manter, em alguma medida, extensão com o fluxo de energia popular revolucionária que foi multiplicado por cem. Isso, nem é preciso dizer, não significa que treinamento consistente e instrução sistemática nos conceitos marxistas devem ser deixados de lado. Nós devemos, entretanto, lembrar que no presente momento um significado muito maior no que diz respeito a treinamento e educação está atribuído às operações militares, que ensinam aos inexperientes precisamente e inteiramente nosso sentido de compromisso. Nós devemos lembrar que a nossa crença “doutrinária” no marxismo está agora sendo reforçada pela marcha dos eventos revolucionários, que está por toda a parte fornecendo lições objetivas às massas e que todas essas lições confirmam precisamente o nosso dogma….
“Jovens lutadores devem ser recrutados de forma mais ousada, ampla e rapidamente para todas as colunas de todas e de todo o tipo de nossos órgãos. Centenas de novos órgãos devem ser montados para este propósito sem um minuto de atraso. Sim, centenas; isso não é uma hipérbole, e que não venha ninguém me dizer que agora é 'tarde demais' para realizar tamanha tarefa organizativa. Não, nunca é tarde demais para organizar. Nós devemos usar a liberdade que nós estamos conseguindo pela lei e a liberdade que nós estamos tendo apesar da lei para reforçar e multiplicar todas as variedades de órgãos do partido.” [ênfase no original]

O conflito entre a política de recrutamento de massa de Lenin e os conservadores “homens dos comitês” foi uma das questões mais quentes do congresso bolchevique de abril de 1905. A moção de Lenin sobre o assunto ganhou por uma apertada maioria. Essa moção chama os Bolcheviques a

“… fazer todo esforço para reforçar os laços entre o partido e as massas da classe trabalhadora, elevando setores ainda mais amplos dos proletários para a completa consciência socialdemocrata, desenvolvendo sua atividade revolucionária socialdemocrata, fazendo assim com que o maior número possível de trabalhadores capazes de liderar o movimento e os órgãos do partido seja elevado a partir da massa da classe trabalhadora para membros dos centros locais e do meio partidário através da criação de um número máximo de organizações da classe operária ligadas ao nosso partido….”
– “Rascunho das Resoluções Entre Trabalhadores e Intelectuais nos Órgãos socialdemocratas”, abril de 1905

Em oposição à política de recrutamento de massa, os conservadores homens dos comitês bolcheviques citaram O Que Fazer? com sua linha de “quanto mais exigente, melhor”. Lenin replicou que a polêmica de 1902 buscava guiar a formação de um grupamento oposicionista dentro de um movimento politicamente heterogêneo de círculos de propaganda secretos. As tarefas que os Bolcheviques enfrentavam em 1905 eram, para dizer o mínimo, diferentes.

Lenin estava absolutamente certo ao se opor à atitude conservadora com relação ao recrutamento de massa durante a revolução de 1905. Se as dezenas de milhares de jovens trabalhadores subjetivamente revolucionários, mas politicamente crus, que vieram a tona não fossem recrutados pelos Bolcheviques, eles iriam naturalmente se juntar aos oportunistas Mencheviques, aos radicais populistas Socialistas Revolucionários ou aos anarquistas. O partido revolucionário teria sido privado de uma grande e importante geração proletária. Sem o recrutamento de massa o Partido Bolchevique teria sido esterilizado durante a revolução e daí em diante.

Outro aspecto do conservadorismo do aparato dos “homens dos comitês” bolcheviques era uma atitude sectária com relação às organizações de massa lançadas pela revolução – os sindicatos e, acima de tudo, os sovietes. O fundamental Soviete [Conselho] de São Petersburgo de Deputados dos Operários se originou em outubro de 1905 como um comitê geral centralizado de greves. Enquanto os Mencheviques mergulharam nos sindicatos e nos sovietes precisamente porque estes eram programaticamente frouxos, de uma natureza política heterogênea, uma seção da liderança dos Bolcheviques descreditava tais organizações como adversárias do partido.

Assim, em outubro de 1905, o comitê central Bolchevique na Rússia (Lenin ainda estava no exílio) endereçou uma “Carta a Todos os Órgãos do Partido” que declarava:

“Todas as organizações representam um certo estágio no desenvolvimento político do proletariado, mas se elas se localizam fora da socialdemocracia, elas estão, objetivamente, em perigo de manter o proletariado num nível político primitivo e assim subjugado aos partidos burgueses”.
– Citado em Tony Cliff, Lenin – Volume I: Construindo o Partido (1975)

A atitude inicial sectária dos Bolcheviques com relação aos sovietes permitiu aos Mencheviques desempenhar neles um papel de liderança ao preencher um vácuo político. Dessa forma Trotsky, como presidente do Soviete de São Petersburgo, emergiu como o mais proeminente revolucionário socialista em 1905.

Assim como havia lutado por uma política de recrutamento de massa, Lenin interviu para corrigir uma atitude sectária abstencionista com ralação aos sovietes. Numa carta para a imprensa bolchevique chamada “Nossas Tarefas e o Soviete de Deputados dos Operários” (novembro de 1905) ele escreveu:

“… o Soviete de Deputados de Operários ou o partido? Acho que seria errado pôr a pergunta desta forma e que a decisão deve certamente ser: ambos o Soviete de Deputados de Operários e o partido. A única questão – e uma altamente importante – é como dividir, e como combinar, as tarefas do Soviete e aquelas do Partido Operário Social Democrata Russo.
“Eu creio que não seria aconselhável ao Soviete aderir inteiramente a um único partido qualquer.” [enfase no original]

Assim como Trotsky, Lenin considerava os sovietes a base organizativa para um governo revolucionário:

“Na minha cabeça, o Soviete de Deputados dos Operários, como um centro revolucionário provendo liderança política, não é uma organização ampla demais, mas ao contrário, muito restrita. O Soviete deve declarar a si mesmo o governo provisório revolucionário, ou formar tal governo, e por todos os meios recorrer para este fim a participação de novos deputados, não apenas de trabalhadores, mas antes de tudo, de marinheiros e soldados…; em segundo lugar, do campesinato revolucionário, e em terceiro, da intelligentsia burguesa revolucionária. O Soviete deve selecionar um forte núcleo para o governo provisório revolucionário e reforçá-lo com representantes de todos os partidos democratas revolucionários (mas, é claro, apenas revolucionários, e não liberais).”
Idem.

A orientação positiva de Lenin com relação aos sindicatos e sovietes em 1905 não representa uma mudança em sua posição prévia sobre um partido de vanguarda. Ao contrário, o conceito de um partido de vanguarda pressupõe e de fato requer organizações muito amplas através das quais o partido possa liderar as massas de trabalhadores de consciência mais atrasada. O Que Fazer? declara muito claramente a relação entre o partido e os sindicatos:

“As organizações dos trabalhadores para luta econômica devem ser as organizações sindicais. Todo trabalhador socialdemocrata deveria tão quanto possível ajudar e efetivamente construir essas organizações. Mas, enquanto isso é verdade, certamente não é do nosso interesse exigir que apenas socialdemocratas sejam eleitos como membros nos sindicatos, uma vez que isso apenas iria estreitar o escopo de nosa influência nas massas. Deixemos cada trabalhador que entenda a necessidade de união para lutar contra os patrões e o governo se juntar aos sindicatos. O objetivo exato dos sindicatos seria impossível de ser atingido, se eles não reunissem todos aqueles que adquiriram pelo menos o mais elementar nível de compreensão, se eles não fossem organização muito amplas. Quanto mais amplas essas organizações, mais amplo vai ser o nosso nível de influência sobre elas.” [ênfase no original]

Lenin Renunciou a O Que Fazer?

Quase todo revisionista de direita se apoiou na luta de Lenin por uma política de recrutamento de massa e contra o conservadorismo do aparato do partido para afirmar que o fundador do comunismo moderno abandonou os princípios de O Que Fazer? nessa ocasião e daí por diante. O movimentista-reformista britânico Tony Cliff conclui que em 1905:

“Sobre a idéia de que consciência socialista só poderia ser trazida de “fora”, e de que a classe podia alcançar espontaneamente apenas uma consciência sindical, Lenin agora formulava sua conclusão em termos que eram o oposto absoluto daqueles de O Que Fazer? Num artigo chamado 'A Reorganização do Partido', escrito em novembro de 1905, ele diz sem rodeios: 'A classe trabalhadora é instintivamente, espontaneamente socialdemocrata'.”
Op. cit.

Jean-Jacques Marie, líder da neo-kautskista Organização Comunista Internacionalista francesa, diz praticamente a mesma coisa:

“Lenin abandonou a rigidez na definição que ele tinha dado da relação entre 'consciência' e 'espontaneidade'. Após o segundo congresso (agosto de 1903) ele indicou que tinha 'pego pesado' ou 'arrancado o bastão quebrado pelos economicistas e o quebrado pro outro lado'. A revolução de 1905 só poderia forçá-lo a restringir a função histórica de O Que Fazer? a um momento particular.”
– Introdução a O Que Fazer? (1966)

Porque todos os tipos de reformistas e centristas exploram a luta de Lenin em 1905 contra o conservadorismo do aparato por propósitos anti-leninistas, é extremamente importante definir precisamente as questões de tal disputa. Que aspecto ou aspectos de O Que Fazer? Lenin considerava ainda relevantes em 1905?

Lenin não mudou sua posição com relação à consciência e espontaneidade. Em 1905 e até a sua morte, ele manteve que o partido de vanguarda revolucionária era inequivocamente a expressão consciente dos interesses históricos do proletariado. Como nós apontamos, o congresso bolchevique de abril de 1905, onde Lenin lutou por uma campanha de recrutamento de massa, condenou os Mencheviques por uma “tendência geral de menosprezar o significado da consciência, que eles subordinam à espontaneidade, na luta proletária”. Lenin não considerava que os “jovens lutadores” e futuros recrutas em 1905 fossem mais politicamente avançados que os homens dos comitês bolcheviques. Ao contrário, ele insistiu que os notáveis e empenhados homens dos comitês podiam e deveriam elevar os subjetivamente revolucionários “jovens lutadores” ao seu próprio nível.

Lenin não jogou descarga abaixo o programa revolucionário do partido para atrair trabalhadores de consciência rebaixada; ele não caiu em demagogia. Isso fica óbvio da passagem citada em “Novas Forças e Novas Tarefas”. Ele também não acreditava que recrutamento amplo requeria uma queda de nível na responsabilidade e disciplina dos membros. O congresso bolchevique de abril substituiu a definição frouxa de Martov de 1903 sobre a condição de membro com a posição de Lenin quanto a participação formal na organização. Nem mesmo Lenin achava que a transformação dos Bolcheviques num partido operário de massas deveria levar a um significativo relaxamento no centralismo organizativo. Através desse período ele reafirmou sua crença de que centralismo era um princípio organizativo fundamental da socialdemocracia revolucionária. Por exemplo, no artigo “O Congresso de Jena do Partido Socialdemocrata Alemão” (setembro de 1905), ele escreveu:

“É importante que a mais marcante característica desta revisão [das regras do SPD] deveria ser sublinhada, ou seja, a tendência em direção a maior, mais abrangente e mais rigorosa aplicação do princípio do centralismo, o estabelecimento de uma organização mais forte….
“No todo, isso obviamente mostra que o crescimento do movimento socialdemocrata e de seu espírito revolucionário necessariamente e inevitavelmente leva ao estabelecimento consistente do centralismo.”

Construindo nas Bases de O Que fazer?

Em que sentido então Lenin considerava O Que Fazer? como inaplicável para as tarefas que os Bolcheviques enfrentavam em 1905? Em 1905 Lenin defendia uma redução do até então nível normal de experiência política e conhecimento requerido para recrutamento e também para responsabilidades de liderança. E essa mudança não estava tanto no conceito de Lenin de um partido de vanguarda como na consciência do proletariado russo. Nas condições clandestinas de 1902-3, apenas um pequeno número de trabalhadores avançados iria aderir ao programa socialdemocrata revolucionário, arriscando-se à prisão e ao exílio, e aceitariam a disciplina da recém-formada tendência do POSDR. Após o Domingo Sangrento dezenas de milhares de jovens militantes trabalhadores e também pequeno-burgueses radicais queriam se tornar revolucionários socialdemocratas, até onde eles entendiam o que isso significava. Recrutamento amplo em 1902-3 teria sufocado os elementos revolucionários do POSDR numa massa de trabalhadores russos atrasados, ortodoxos e liberal-czaristas. Em 1905, a sólida organização dos quadros Bolcheviques foi capaz de assimilar um grande número de trabalhadores radicalizados, apesar de politicamente crus.

O recrutamento de massa de Lenin em 1905 não foi nem um repúdio e nem uma correção dos princípios expressos em O Que Fazer? mas se baseou em sua bem-sucedida implementação. Uma condição prévia para um recrutamento amplo durante uma crise revolucionária é uma homogênea organização de quadros. E Lenin explicitamente declara isso nessa passagem, que o próprio Cliff cita, mas se recusa ou é incapaz de entender:

“Há perigo em se acomodar diante de um repentino influxo de um grande número de militantes não-socialdemocratas no partido. Se isso ocorresse, o partido se dissolveria entre as massas, ele deixaria de ser a vanguarda consciente da classe, seu papel seria reduzido ao de um rabo atrás das massas. Isso iria significar um período bastante deplorável de fato. E esse perigo poderia, sem dúvida alguma se tornar muito sério se nós mostrássemos alguma inclinação em direção à demagogia, se nos faltassem princípios partidários (programa, regras táticas, experiência organizativa), ou se esses princípios fossem fracos e instáveis. Mas o fato é que não existe “se”…. Nós exigimos consciência de classe daqueles que se unem ao partido, nós insistimos na tremenda importância da continuidade no desenvolvimento do partido, nós pregamos disciplina e exigimos que cada um dos membros do partido seja treinado em alguma das organizações partidárias. Nós estabelecemos firmemente o programa partidário que oficialmente reconhecido por todos os socialdemocratas e as propostas fundamentais que não geraram nenhum criticismo…. Nós temos resoluções sobre táticas que funcionaram consistentemente no segundo e terceiro congressos e no curso de muitos anos de trabalho da imprensa socialdemocrata. Nós também temos alguma experiência organizativa e uma organização de verdade, que desempenhou um papel educativo e sem dúvida trouxe frutos.” [ênfase no original]
– “A Reorganização do Partido” (novembro de 1905)

Um fraco grupo de propaganda ou partido pequeno, heterogêneo que abre as suas portas durante um levante revolucionário será mergulhado num pântano de imaturidade e impressionismo, elementos voláteis que levarão esse partido ao desastre. Isso é precisamente o que aconteceu à Liga Spartacus alemã de Luxemburgo e Liebknecht entre 1918-19. Os bolcheviques de Lenin em 1905 foram capazes de evitar o destino trágico de Liga Spartacus porque eles haviam construído uma organização de acordo com os princípios de O Que Fazer? nos cinco anos anteriores.

Diferente dos Bolcheviques, os Mencheviques foram de certa forma envolvidos pela sua massa de recrutas radicalizados. Sob o impacto do aprofundamento da revolução, a liderança Menchevique de fato rachou. O principal seguidor de Martov, Theodore Dan, e Martynov (dentre todos) apoiaram a campanha de Trotsky por um “governo dos trabalhadores”. O próprio Martov e Plekhanov aderiram à posição menchevique oficial de se abster da luta pelo poder governamental. Assim a revolução de 1905 fez com que as duas maiores figuras de autoridade do menchevismo ficassem isoladas na ala direita de sua própria tendência.

É duvidoso que Lenin acreditasse que a ampla maioria daqueles que foram recrutados em 1905 permanecessem bolcheviques a longo prazo, particularmente se a revolução falhasse (como falhou) e um período de reação se estabelecesse. Mas entre os primeiros atraídos para a luta revolucionária em 1905, era difícil distinguir os elementos genuinamente avançados dos politicamente atrasados ou com desvios, os revolucionários de mente séria daqueles simplesmente pegos no calor do momento. Apenas tempo e disputa interna iriam poder separar os futuros bolcheviques recrutados durante a revolução dos acréscimos acidentais. Durante a revolução de 1905 o verdadeiro Partido Bolchevique continuou sendo os homens dos comitês do tempo do Iskra: os novos recrutas eram militantes aspirantes.

Sob condições normais uma organização revolucionária seleciona, educa e treina seus membros em grande parte antes de eles entrarem. Esse processo preparatório frequentemente ocorre através de uma organização intermediária (por exemplo, comitê de mulheres, colateral sindical, coletivo estudantil). Mas durante o levante revolucionário, tal longo período de pré-recrutamento pode privar o partido de vanguarda de alguns dos melhores jovens lutadores que querem se prestar a um papel político maior através da participação no partido. Havendo um núcleo de quadros suficientemente grande e sólido, o partido de vanguarda pode buscar recrutar todos os elementos aparentemente saudáveis que concordarem com o programa marxista revolucionário tão bem quanto o entenderem. O processo de seleção e educação ocorre então internamente.

Recrutamento de massa durante uma revolução representa, de forma extrema, uma característica geral do crescimento e desenvolvimento do partido. A transição de um círculo de propaganda para um partido operário de massas não é um processo uniforme, linear. Períodos de rápido crescimento e expansão em novos meios são tipicamente seguidos por um período de consolidação, marcado por um certo giro para dentro, em direção à cristalização de uma nova camada de quadros.

Em junho de 1907, Lenin trouxe a tona uma coleção dos seus principais escritos intitulada Doze Anos. A essa altura os Bolcheviques eram ainda um partido de massas na legalidade com um tamanho aproximado de 45.000 membros. A vitória da reação czarista ainda não havia reduzido os Bolcheviques a uma rede clandestina relativamente pequena. A condição dos Bolcheviques no começo de 1907 e a situação que eles enfrentaram era então muito diferente do período do Iskra entre 1902-1903.

Lenin então teve que explicar e enfatizar o contexto histórico e propósito fracional de O Que Fazer? Em seu prefácio para Doze Anos, Lenin observa que

“Os economicistas tinham ido a um extremo. O Que Fazer?, como eu disse, corrige o que tinha sido distorcido pelos economicistas….
“O significado dessas palavras é suficientemente claro: O Que Fazer? é uma correção controversa das distorções dos economicistas e seria errado considerar o livro sob qualquer outro ângulo.”

Todo revisionista de direita (por exemplo, Tony Cliff, J.J. Marie) se apoiou nessas duas frases como se elas fossem um vale para o paraíso, para poder considerar o que Lenin disse em O Que Fazer? como uma declaração política historicamente obsoleta e exagerada. Isso é uma distorção fundamental da intenção de Lenin. O Que Fazer? pareceria unilateral em 1907 porque tratava da cristalização de um partido agitativo composto por revolucionários profissionais a partir de um frouxo movimento de círculos de propaganda. A polêmica de 1902 não lidava com a transformação de tal organização agitativa em um partido operário de massas, nem com os problemas e tarefas de um partido revolucionário de massas.

No mesmo prefácio para Doze Anos, Lenin observa que construir uma organização de revolucionários profissionais é um estágio necessário em criar um partido proletário revolucionário, do qual aqueles serão o núcleo vital. Ele aponta que os homens de comitê do período do Iskra formaram as bases de todas as organizações bolcheviques subsequentes:

“Surge a questão sobre quem realizou, quem trouxe até essa etapa superior de unidade, solidariedade e estabilidade o nosso partido. Isso foi realizado pela organização de revolucionários profissionais, construção à qual o Iskra fez a maior contribuição. Qualquer um que conheça bem a história do partido, qualquer um que tenha dado uma mão na construção do partido, só tem que olhar a lista de delegados de qualquer dos grupos, digamos, no Congresso de Londres [de 1907] para ser convencido e perceber de uma só vez que é uma lista dos velhos membros, o núcleo central que trabalhou mais do que todos para construir o partido e fazer dele o que é hoje.”
Lenin

Partido, Tendência e “Liberdade de criticar”

A explosão das diferenças com os Mencheviques sobre o papel do liberalismo burguês na revolução enfraqueceu, mas não eliminou, as forças dos conciliadores no campo bolchevique. No terceiro congresso (composto apenas por bolcheviques) do POSDR, em abril de 1905, Lenin se encontrou em minoria diante da questão sobre como lidar com os Mencheviques. Ele desejava expulsar os Mencheviques, que haviam boicotado o congresso, de dentro do POSDR. A maioria dos delegados não estavam desejosos a dar um passo tão extremo. O congresso adotou uma moção para que os Mencheviques fossem permitidos permanecer num POSDR unitário sob a condição de que reconhecessem a liderança da maioria bolchevique e aderissem à disciplina do partido. É desnecessário dizer, os Mencheviques rejeitaram tais condições de unidade de primeira.

Enquanto o começo da revolução de 1905 aprofundou o racha entre bolchevismo e menchevismo, o seu desenvolvimento posterior produziu pressões fortíssimas pela reunificação da socialdemocracia russa. Um número de fatores, cada um reforçando o anterior, criou um tremendo sentimento de unidade entre os membros de ambas as tendências. A luta militar comum contra o Estado czarista produziu uma forte noção de solidariedade entre os trabalhadores avançados da Rússia, os militantes e os apoiadores do movimento socialdemocrata.

Na altura do verão de 1905, uma ampla maioria de ambas as tendências consistia de recrutas novos que não haviam passado pela experiência da luta do Iskraismo contra os economicistas ou pelo racha bolchevique-menchevique que se seguiu. Assim, para a maioria dos trabalhadores socialdemocratas, a divisão organizativa era incompreensível e pareceu se basear em “fatos antigos.” A crença geral de que as diferenças na socialdemocracia russa eram insignificantes foi reforçada pelo desarranjo entre os líderes mencheviques. O mais proeminente menchevique em 1905 era Trotsky, líder do soviete de São Petersburgo, que estava à esquerda de Lenin nos objetivos e perspectivas para a revolução. Assim, as atitudes políticas de muitos que se juntaram aos Bolcheviques e Mencheviques em 1905 não correspondiam aos programas de suas respectivas lideranças. Na sua biografia de Stalin em 1940, Trotsky observou que em 1905 a coluna menchevique estava muito mais próxima da posição de Lenin sobre o papel da socialdemocracia na revolução do que da de Plekhanov.

O sentimento por unidade era tão forte que inúmeros comitês bolcheviques locais simplesmente se fundiram com seus equivalentes mencheviques apesar da oposição da liderança. Em suas memórias escritas nos anos 1920, o velho bolchevique Osip Piatnitsky descreve a situação do movimento socialdemocrata em Odessa no fim de 1905:

“Era óbvio para o comitê [da liderança bolchevique] que a proposta de união seria aprovada por ampla maioria nas conferências de partido tanto dos Bolcheviques quanto dos Mencheviques, pois onde quer que fosse levantada a questão da unidade ela era apoiada quase unanimemente. Dessa forma, o comitê bolchevique foi forçado a discutir os termos da união a qual eles próprios eram contra. Foi importante fazer isso, por que de outra forma a unidade teria ocorrido sem condição nenhuma de qualquer maneira.”
Memórias de um Bolchevique (1973)

Na sua história dos Bolcheviques de 1923, Gregory Zinoviev resume a reunificação de 1906 assim:

“Como consequência das batalhas revolucionárias do fim de 1905 e sob a influência das massas, os quadros dos Bolcheviques e Mencheviques foram forçados a se reunir. De fato, as massas forçaram os Bolcheviques a se reconciliar com os Mencheviques em inúmeras questões.”
História do Partido Bolchevique: Um Esboço Popular (1973)

A declaração de Zinoviev talvez seja muito simplista. É improvável que Lenin tenha simplesmente capitulado à pressão de baixo. O esmagador sentimento por unidade significava que as divisões organizativas não mais correspondiam à consciência política dos respectivos membros. Alguns dos jovens recrutas bolcheviques eram realmente mais próximos à esquerda dos Mencheviques, e vice-versa. Um período de disputa interna era necessário para separar os elementos revolucionários que haviam aderido ao movimento socialdemocrata em 1905 dos elementos oportunistas.

Reunificação

No outono de 1905, o comitê central bolchevique e o comitê organizativo menchevique começaram negociações conjuntas. O comitê central bolchevique na Rússia aprovou as fusões em nível local como meio de reunificar o POSDR como um todo. Lenin, que ainda estava no exílio na Suíça, interviu fortemente para parar essa unificação orgânica partindo de baixo. Ele insistiu que a reunificação fosse discutida pelas direções, num novo congresso de partido, com delegados eleitos numa plataforma fracional. Numa carta (3 de Outubro de 1905) para o comitê central, ele escreveu:

“Nós não deveríamos confundir a política de unir dois partidos com misturar ambos os partidos. Nós concordamos em unir as duas partes, mas nós nunca iremos concordar em misturá-las. Nós devemos exigir dos comitês uma divisão clara, e então dois congressos e um entrelaçamento.” [ênfase no original].

Em dezembro de 1905, um Centro Unitário foi formado consistindo de um número igual de bolcheviques e mencheviques. Ao mesmo tempo, os órgãos centrais das tendências rivais, o Iskra menchevique e o Proletary bolchevique, foram interrompidos e substituídos por uma publicação única, Partinye Izvestaii (Notícias do Partido).

Significativamente, os Mencheviques concordaram em aceitar a definição de Lenin sobre o critério para ser membro em 1903, incluindo a exigência da participação organizativa formal. Isso foi parte das concessões aos leninistas, mas em muito refletia o fato de que nas condições relativamente abertas de 1905-6, participação organizativa formal não era um impedimento para um recrutamento amplo. A reviravolta dos Mencheviques refuta completamente a noção generalizada de que a insistência de Lenin de que membros deviam se sujeitar à disciplina organizativa era uma peculiaridade do trabalho clandestino. Ao contrário, foram os Mencheviques que consideraram que a ilegalidade requeria uma definição mais frouxa de participação para poder atrair trabalhadores e intelectuais socialdemocratas sem desejo de enfrentar o rigor e perigo da clandestinidade.

O quarto congresso (de “reunificação”), ocorrido em Estocolmo em abril de 1906, foi dividido entre 62 mencheviques e 46 bolcheviques. Também estavam representados o Bund Judaico, os socialdemocratas da Letônia e os socialdemocratas da Polônia e Lituânia, liderados por Luxemburgo e Jogiches. Ninguém contestou que a representação das tendências no quarto congresso correspondia à sua respectiva força na base entre os trabalhadores socialdemocratas na Rússia. (no começo de 1906, os Mencheviques tinham cerca de 18.000 membros, os Bolcheviques cerca de 12.000).

O que contribuiu para que os Mencheviques tivessem maioria entre os socialdemocratas russos no começo de 1906? Primeiro, a atitude conservadora dos bolcheviques membros dos comitês com relação ao recrutamento no começo de 1905 também se manifestou em uma atitude sectária diante das novas organizações de massa lançadas pela revolução – os sindicatos e, acima de tudo, os sovietes. Assim os Mencheviques foram capazes de estar um passo a frente na disputa pela liderança das organizações gerais da classe trabalhadora. Embora Trotsky não fosse da tendência Menchevique, seu papel como cabeça do soviete de São Petersburgo fortaleceu a autoridade da ala anti-leninista da socialdemocracia russa. Em segundo lugar, o chamado dos Mencheviques por fusão orgânica imediata os permitiu apelar à ingenuidade política e ao desejo de unidade dos jovens recrutas.

Com a derrota da insurreição liderada pelos Bolcheviques em Moscou em dezembro de 1905, a maré ficou a favor da reação czarista. Enquanto os Bolcheviques consideraram as vitórias czaristas um revés temporário durante uma situação revolucionária contínua, os Mencheviques concluíram que a revolução havia acabado. A posição menchevique correspondeu ao crescente sentimento de derrotismo entre as massas nos primeiros meses de 1906.

Ao longo do período do quarto congresso, Lenin diversas vezes afirmou sua lealdade a um POSDR unitário. Por exemplo, numa breve declaração de tendência na conclusão do congresso, ele escreveu:

“Nós devemos e iremos lutar ideologicamente contra as decisões do congresso que consideramos erradas. Mas ao mesmo tempo nós declaramos a todo o partido que nos opomos a um racha de qualquer tipo. Nós permanecemos submetidos às decisões do congresso…. Estamos profundamente convencidos de que as organizações operárias socialdemocratas devem estar unidas, mas nessas organizações unitárias deve haver um amplo e livre debate crítico das questões do partido, livre criticismo entre camaradas e avaliação dos eventos na vida do partido.”
– “Um Apelo ao Partido pelos Delegados do Congresso de Unificação que pertenciam ao Antigo Grupo 'Bolchevique'” (abril de 1906)

Para Lenin, a reunificação representava ao mesmo tempo a continuação da aderência à doutrina kautskista de “partido de toda a classe” e uma manobra tática para ganhar a massa de trabalhadores jovens, inexperientes que haviam se unido ao movimento socialdemocrata durante a revolução de 1905. Nós não temos meios de avaliar que peso Lenin deu a essas duas consideração diferentes. Nem sabemos como Lenin via em 1906 o curso futuro das relações bolcheviques-mencheviques.

Barricadas em Moscou em dezembro de 1905

Barricadas em Moscou em dezembro de 1905

É improvável que Lenin estivesse ansioso ou projetasse um racha definitivo e a criação de um Partido Bolchevique. Entre outros fatores, Lenin sabia que os Bolcheviques não seriam reconhecidos como únicos representantes da socialdemocracia russa pela Segunda Internacional. E quando em 1912 os Bolcheviques racharam completamente com os Mencheviques e reivindicaram ser o POSDR, a liderança da Internacional não reconheceu essa reivindicação.

Lenin provavelmente gostaria de poder reduzir os Mencheviques a uma minoria impotente sujeita à disciplina de uma liderança revolucionária (leia-se bolchevique) no POSDR. Era assim que ele via a relação dos revisionistas seguidores de Bernstein em relação à liderança Bebel/Kautsky do SPD. Entretanto, ele sabia que as colunas mencheviques não desejariam e talvez fossem incapazes de agir como uma minoria comportada num partido revolucionário. Ele posteriormente reconheceu que não tinha a autoridade de um Bebel para fazer uma tendência oportunista se submeter à sua liderança organizativa.

Em busca da liderança do movimento operário russo, Lenin não se limitou em ganhar membros nas colunas mencheviques, a puramente à luta de tendência interna do POSDR. Ele esperava recrutar trabalhadores sem partido e radicais pequeno-burgueses diretamente para a tendência Bolchevique. Com esse objetivo, a “tendência” Bolchevique do POSDR agiu muito como um partido independente com sua própria imprensa, liderança e estrutura de disciplina, finanças, atividades públicas e comitês locais. De que nesse período entre 1906-12 os Bolcheviques, enquanto formalmente uma tendência unitária do POSDR, tinham a maioria das características de um partido independente foi o julgamento de figuras políticas tão diversas quanto Trotsky, Zinoviev e o líder menchevique Theodore Dan.

No curso de uma polêmica contra a tendência americana de Shachtman (no SWP), Trotsky caracterizou os Bolcheviques nesses período como “tendência” que “mostrava todos os traços de um partido” (Em Defesa do Marxismo [1940]).

A História do Partido Bolchevique de Zinoviev descreve a situação seguinte ao quarto congresso:

“Os Bolcheviques tinham armado durante o congresso seu próprio Comitê Central, interno e ilegal para o restante do partido. Esse período na história do nosso partido, quando nós estávamos na minoria tanto no Comitê Central quanto no Comitê de São Petersburgo e tínhamos que esconder nossa atividade revolucionária em separado foi muito árdua e insatisfatória para nós…. Era uma situação onde dois partidos estavam aparentemente operando na estrutura de um.” [nossa ênfase]

O trabalho de Dan de 1945, As Origens do Bolchevismo (1970), apresenta uma análise similar das relações bolcheviques-mencheviques:

“Não era uma divergência organizativa, mas política, que rapidamente fez rachar a socialdemocracia russa em duas frações, que ora se aproximavam e logo depois se digladiavam, mas que basicamente permaneceram partidos independentes que continuaram lutando um com o outro até mesmo no tempo em que elas estavam nominalmente dentro do espectro de um partido unitário.”

Centralismo Democrático e “Liberdade de Criticar”

Do quarto congresso em abril de 1906 até o quinto congresso em maio de 1907, os Bolcheviques foram uma tendência minoritária do POSDR. Ao lutar pela liderança do partido os Bolcheviques não se orientaram primariamente para ganhar uma seção dos quadros mencheviques. Com poucas exceções individuais, Lenin considerava os temperados quadros mencheviques como duros oportunistas, pelo menos por um período próximo. Paradoxalmente, a reunificação demonstrou a espessura da linha separando Bolcheviques e Mencheviques; poucos veteranos de ambos os grupos mudaram de lado.

Um dos motivos de Lenin para concordar com a unidade foi que o racha continuado repeliu muitos trabalhadores socialdemocratas de se unir a qualquer um dos grupos. Uma vez que recrutar elementos sem partido era a chave para lutar contra a liderança menchevique do POSDR, Lenin naturalmente queria que fosse permitido atacar publicamente tal liderança. Foi nesse contexto histórico que Lenin definiu centralismo democrático como “liberdade de criticar, unidade na ação”. No período de 1906-07, Lenin reivindicou em numerosas ocasiões o direito das minorias de se opor publicamente às posições, mas não nas ações, da liderança do partido.

Previsivelmente, vários revisionistas de direita “redescobriram” a reivindicação de 1906 de Lenin por “liberdade de criticar” como o produto de uma aderência contínua a um conceito socialdemocrata clássico de partido e não uma manobra tática contra os Mencheviques – e proclamaram essa a verdadeira forma do centralismo democrático leninista. Certos grupos centristas de esquerda que romperam com o falso-trotskista Secretariado Unificado no começo dos anos de 1970 fizeram de “liberdade de criticar” uma parte chave do seu programa. O mais significativo desses grupos foi o Internationale Kommunisten Deutschlands (IKD) da Alemanha Ocidental, o qual fracamente ainda existe hoje. A Fração Leninista (FL) no SWP americano, que gerou a breve Liga Luta de Classes (LLC), da mesma forma defendeu a “liberdade de criticar”. Um líder central da FL/LLC, Barbara G., escreveu um longo documento intitulado “Centralismo Democrático” (agosto de 1972) sobre o assunto. A conclusão central é:

“Lenin sentia que a discussão das diferenças políticas na imprensa do partido era importante porque o partido e a imprensa eram da classe trabalhadora. Se os trabalhadores deveriam ver o partido como seu partido, eles devem ver as questões do partido como suas questões, lutas do partido como suas lutas. O trabalhador que se aproxima do partido deve entender que ele tem a possibilidade de ajudar a construir o partido, não apenas através da repetição da linha da maioria, mas (sob as guias do partido) colocando suas críticas e idéias.” [ênfase no original]

Barbara G. cita com aprovação o artigo de Lenin de maio de 1906, “Liberdade para Criticar e Unidade de ação”:

“Criticismo dentro dos limites dos princípios do programa do partido devem ser bastante livres … não apenas nos encontros do partido, mas também em encontros públicos. Tal criticismo, ou tal 'agitação' (já que criticismo é inseparável de agitação) não pode ser proibido.”

O “partido” a qual Lenin se refere aqui não é o Partido Bolchevique que liderou a revolução de Outubro. É o partido inclusivo de todos os socialdemocratas russos liderado pela tendência Menchevique, ou seja, por demonstrados oportunistas. Igualar o POSDR de 1906 com a vanguarda revolucionária é jogar nas trevas a distinção entre bolchevismo e menchevismo.

Sem fazer um racha permanente, Lenin fez tudo para prevenir a liderança menchevique do POSDR de dificultar a agitação e ações revolucionárias dos Bolcheviques. Nós já citamos Zinoviev para os efeitos de que os Bolcheviques estabeleceram uma estrutura da liderança formal em violação às regras do partido. Eles também tinham finanças independentes. Por volta de agosto de 1906, os Bolcheviques haviam restabelecido seu orgão de tendência, o Proletary, sob aprovação do Comitê de São Petersburgo onde haviam acabado de ganhar a maioria.

Que os Bolcheviques e Mencheviques não poderiam coexistir num partido unitário de acordo com a fórmula de “liberdade de criticar, unidade de ação” se demonstrou pela campanha eleitoral de São Petersburgo no começo de 1907. Durante esse período o conflito principal entre os grupos foi focado na questão sobre o apoio eleitoral ao partido liberal monarquista, os Cadetes. Numa conferência do partido em novembro de 1906, a maioria menchevique adotou o compromisso pelo qual os comitês locais determinassem sua própria política eleitoral. Para minar o reduto bolchevique de São Petersburgo, o Comitê Central ordenou então que o comitê se dividisse em dois. Denunciando isso corretamente como puramente uma manobra de tendência, os Bolcheviques se recusaram a dividir o comitê. Numa conferência em São Petersburgo para decidir sobre a política eleitoral, os Mencheviques racharam, protestando que a conferência era ilegítima. Eles então apoiaram os Cadetes contra a campanha Bolchevique pelo POSDR.

Quando Lenin denunciou esse ato de traição de classe num livro, As Eleições de São Petersburgo e a Hipocrisia dos Trinta e Um Mencheviques, o Comitê Central colocou-o sob as acusações de fazer declarações “inadmissíveis para um membro do partido”. As ações de julgamento do Comitê Central contra Lenin foram adiadas até o quinto congresso, onde foram tornadas inócuas pela maioria ganha pelos Bolcheviques.

O espírito com o qual Lenin reivindicou “liberdade de criticar” pode ser visto em sua “defesa” contra a acusação dos Mencheviques de que ele “lançava suspeitas sobre a integridade política dos membros do partido”:

“Por meus afiados e descorteses ataques sobre os Mencheviques na ocasião das eleições de São Petersburgo, eles na verdade foram bem sucedidos em fazer com que uma parte do proletariado que confia e segue os Mencheviques vacilasse. Esse era meu objetivo. Esse era meu dever como membro da organização socialdemocrata de São Petersburgo que estava conduzindo uma campanha por um bloco de esquerda; porque, depois do racha, isso foi necessário … derrotar os Mencheviques que estavam liderando o proletariado para seguir as pegadas dos Cadetes; foi necessário levar confusão até as suas colunas; foi necessário fazer surgir ódio, aversão e desprezo entre as massas por aquelas pessoas que haviam deixado de ser membros de um partido unitário, tinham se tornado inimigos políticos…. Contra tais inimigos políticos eu conduzi então – e caso haja uma repetição ou desenvolvimento de uma divisão vou sempre conduzir – uma luta de extermínio.” [ênfase no original]
– “Relatório ao Quinto Congresso do POSDR sobre o Racha de São Petersburgo…” (abril de 1907)

A reivindicação de Lenin de “liberdade de criticar” no POSDR liderado pelos Mencheviques em 1906 foi análoga à posição dos trotskistas sobre centralismo democrático quando eles fizeram um entrismo nos partidos socialdemocratas modernos em meados dos anos 1930. Os trotskistas se opuseram ao centralismo democrático para esses partidos para maximizar seu impacto tanto ente os membros da socialdemocracia quanto para fora do partido. Reciprocamente, elementos da liderança socialdemocrata defenderam a adoção de normas de centralismo democrático para suprimir os trotskistas. Referindo-se à experiência dos trotskistas no Partido Socialista americano de Norman Thomas, James P. Cannon expressa muito bem a aplicação única do centralismo democrático à vanguarda revolucionária:

“Centralismo democrático não tem nenhuma virtude especial por si só. É um princípio específico de um partido de combate, formado pela defesa de um único programa, que tem o objetivo de liderar a revolução. Socialdemocratas não tem necessidade de tal sistema de organização pela simples razão de que não tem interesse em liderar uma revolução. Sua democracia e centralismo não são unidos por um hífen [em inglês] mas mantidos em compartimentos separados para propósitos separados. A democracia é para os socialpatriotas e o centralismo é para os revolucionários. A tentativa da tendência “Clarificação”, de Zam e Tyler no Partido Socialista, de introduzir um rígido sistema de organização de 'centralismo democrático' no heterogêneo Partido Socialista (1936-37) foi uma caricatura barulhenta; mais propriamente, um aborto da natureza. A única coisa para que essas pessoas precisavam de centralização e disciplina era para suprimir os direitos da ala esquerda e então expulsá-la.”
– Carta para Duncan Conway (3 de abril de 1953), em Discursos ao Partido (1973)

Em seguida ao racha definitivo com os Mencheviques e à criação do Partido Bolchevique em 1912, Lenin abandonou sua posição de 1906 sobre a “liberdade de criticar”. Em julho de 1914, o escritório da Internacional Socialista marcou uma conferência para reunificar os socialdemocratas russos. Entre as numerosas condições de Lenin para unidade estava uma clara rejeição da “liberdade de criticar”:

“A existência de duas imprensas rivais na mesma cidade ou localidade deve ser absolutamente proibida. A minoria terá o direito de discutir diante de todo o partido, desacordos com o programa, táticas e organização em um material de discussão publicado especialmente para esse propósito, mas não deverá ter o direito de publicar num jornal rival, pronunciamentos disruptivos das ações e decisões da maioria.” [nossa ênfase]
– “Relatório ao Comitê Central do POSDR da Conferência de Bruxelas” (junho de 1914)

Lenin posteriormente ainda estipulou que agitação pública contra o partido sobre a clandestinidade ou sobre a “autonomia nacional” era absolutamente proibido.

Barbara G., em seu texto “Centralismo Democrático”, reconhece que por volta de 1914 Lenin havia mudado de posição:

“Por volta de 1914, então, Lenin definitivamente mudou seu pensamento sobre a seguinte questão: No que ele costumava achar que era permissível haver jornais de tendências dentro do POSDR, ele agora pensava ser inadmissível porque confundiria e dividiria a classe trabalhadora.”

Barbara G. minimiza a rejeição de Lenin a “liberdade de criticar”. Ele não apenas rejeitou órgãos públicos de tendências rivais, mas o direito das minorias de criticar publicamente a posição da maioria sob qualquer forma. Ele posteriormente especificou que em duas diferenças-chave – a clandestinidade e a “autonomia nacional” – a posição da minoria não poderia ser reivindicada publicamente jamais e de maneira alguma. É característica de centristas, como Barbara G., preferir o Lenin de 1906, que aceitava unidade com os Mencheviques, do que o Lenin de 1914, que havia definitivamente rachado com os Mencheviques e então desafiava a doutrina kautskista de que revolucionários e reformistas trabalhistas deveriam coexistir num partido unitário.

O conjunto dos membros e particularmente os quadros de liderança de uma vanguarda revolucionária tem um nível de consciência de classe política qualitativamente mais alto que todos os elementos sem partido. Uma liderança revolucionária pode cometer erros, até mesmo sérios, sobre assuntos onde as massas de trabalhadores estão corretos. Tais ocorrências serão muito raras. Se elas não forem raras, então é o caráter revolucionário da organização que está colocado em questão, não as normas de centralismo democrático.

Uma minoria numa organização revolucionária busca ganhar seus quadros de liderança, não apelar para elementos mais atrasados contra os quadros. A resolução de diferenças dentro da vanguarda deve ser o mais livre possível da intervenção de elementos atrasados, fonte primária da pressão ideológica burguesa. “Liberdade de criticar” maximiza a influência de trabalhadores atrasados, sem falar de inimigos políticos conscientes, sobre a vanguarda revolucionária. Assim, “liberdade de criticar” traz perigo à coesão interna e à autoridade externa da vanguarda proletária.

Lenin

A Luta Contra os Boicotadores

O quinto congresso do POSDR, ocorrido em Londres em maio de 1907 foi quase igualmente dividido entre os Bolcheviques com 89 delegados os Mencheviques com 88. No quarto congresso um ano antes, três partidos associados – a Liga (Bund) Judaica, os socialdemocratas da Letônia e a socialdemocracia do Reino da Polônia e da Lituânia (SDRPeL) de Luxemburgo/Jogiches – haviam sido incorporados ao POSDR numa base semi-federativa. No quinto congresso o Bund tinha 54 delegados, os socialdemocratas da Letônia 26 e o SDRPeL 45.

No decurso de um ano de luta fracional afiada contra o seguidismo liberal dos Mencheviques e a política dos Democratas pró-Constitucionais (Cadetes), os Bolcheviques haviam deixado para trás a sua posição de minoria dentro do movimento socialdemocrata russo. Entretanto, agora a tendência que lideraria o POSDR dependia de três partidos socialdemocratas “regionais”. O Bund apoiava categoricamente os Mencheviques. Os socialdemocratas letões geralmente apoiavam os Bolcheviques, mas ocasionalmente faziam a vez de mediadores entre os dois grupos hostis da Rússia. Foi pelo apoio do SDRPeL de Rosa Luxemburgo que Lenin conseguiu a maioria do quinto congresso e nos órgãos de liderança do POSDR pelos cinco anos seguintes. O bloco Lenin-Luxemburgo de 1906-11 é significativo não apenas em seu efeito histórico, mas também porque ele revela a relação entre o leninismo em desenvolvimento e aquela que era a mais consistente e importante representante da socialdemocracia revolucionária antes de 1914.

O assunto decisivo no quinto congresso foi a atitude com relação ao liberalismo burguês, e especificamente o apoio eleitoral ao Partido Cadete. Com o apoio dos letões e poloneses (e também do grupo de Trotsky/Parvus da ala esquerda dos Mencheviques), a linha Bolchevique venceu; o congresso condenou os Cadetes:

“Os partidos da burguesia liberal-monarquista, chefiados pelo Partido Constitucional Democrático [Cadetes], agora se votlaram definitivamente contra a revolução para se esforçarem impedí-la através de um acordo com a contra-revolução.” – Robert H. McNeal, ed, Decisões e Resoluções do Partido Comunista da União Soviética (1974)

Outra resolução instruiu a fração do POSDR na Duma (Parlamento) a se opor à “política traiçoeira do liberalismo burguês que, sob a palavra de ordem de 'Proteja a Duma!', na verdade sacrifica os interesses populares da imensa massa de trabalhadores” (idem.). Poucos meses após o congresso, uma conferência do partido decidiu apresentar candidatos independentes do POSDR nas futuras eleições da Duma e não apoiar nenhum outro partido.

Enquanto os socialdemocratas da Letônia e da Polônia/Lituânia apoiavam a linha geral dos Bolcheviques no quinto congresso, também moderavam a luta de Lenin contra os Mencheviques. Eles votaram contra a moção de Lenin para condenar a maioria menchevique que estava saindo do Comitê Central. A falta de apoio dos socialdemocratas da Letônia e do SDRPeL também foi a causa da única derrota séria de Lenin no congresso de 1907 do POSDR. O congresso votou em esmagadora maioria se opor às “operações de luta” dos Bolcheviques para “apreender fundos” do governo czarista.

Durante esse período o ataque menchevique sobre os leninistas foi centrado nessas expropriações armadas. Sua reação semi-histérica às expropriações dos Bolcheviques surgiu a partir do impacto chocante sobre a respeitabilidade liberal-burguesa. A expropriações também davam aos Bolcheviques superioridade financeira sobre os Mencheviques. Ao condenar as expropriações dos Bolcheviques sobre os fundos do governo, os Mencheviques estavam convencidos de que tinham a impecável ortodoxia socialdemocrata ao seu lado.

Os Bolcheviques, entretanto, não encaravam a situação normal em que tais roubos iriam imediatamente ativar o aparato de repressão de um Estado extremamente poderoso e centralizado. Muito menos arriscavam serem discriminados pelos trabalhadores que poderiam pensar que eles eram meros criminosos com roupagem política. Os Bolcheviques não mantinham essas expropriações como uma “estratégia” para ser levada a diante por um longo período, com o resultado provável de se degenerarem em um grupo lúmpen de atividade criminal.

Lenin acreditava que havia uma contínua situação revolucionária, na qual a massa de trabalhadores e camponeses estavam ativamente hostis à legalidade czarista. As expropriações dos Bolcheviques eram concentradas no Cáucaso, onde o campesinato armado e bandos nacionalistas regularmente desafiavam as autoridades czaristas. Lenin considerava as expropriações como uma das muitas táticas de guerrilha no curso de uma guerra civil revolucionária. A disputa bolchevique-menchevique a respeito das expropriações armadas era então intrinsecamente ligada à sua diferença fundamental sobre o papel de vanguarda política e militar do partido proletário na revolução para derrubar a autocracia.

A posição de Lenin sobre as expropriações armadas foi apresentada numa resolução ao quarto congresso em abril de 1906. Ele continuou defendendo essa posição ao longo de 1907:

“Considerando que,

(1) quase em lugar nenhum da Rússia desde o levante de dezembro houve um completo cessar das hostilidades, na qual os povos revolucionários estão agora conduzindo-a na forma ataques de guerrilha esporádicos contra o inimigo…. Nós somos da opinião e propomos que o congresso concorde….

(4) que operações de luta também sejam permitidas para o propósito de captar recursos pertencentes ao inimigo, ou seja, o governo autocrático, para satisfazer às necessidades da insurreição, com cuidado particular sendo tomado para que os interesses dos povos sejam infringidos o mínimo possível.” – “Uma Plataforma Tática para o Congresso de Unificação do POSDR” (março de 1906)



Reação czarista e os Bolcheviques Ultra-esquerdistas

Pouco após o quinto congresso do POSDR em junho de 1907, o ministro czarista Stolypin executou um golpe contra a Duma. A Duma foi dissolvida e uma nova (Terceira) Duma proclamou as bases de um novo sistema eleitoral muito menos democrático. Em acréscimo, os deputados socialdemocratas foram presos e acusados de fomentar rebelião nas forças armadas.

O golpe de Stolypin marcou o final definitivo do período revolucionário de 1905. A vitória da reação czarista abriu uma fase nova, e de certa maneira terminal, no conflito bolchevique-menchevique, sobre a necessidade de restabelecer a clandestinidade como estrutura organizativa básica do partido. O início da reação também produziu uma afiada divisão no campo bolchevique entre leninismo e ultra-esquerdismo, uma luta fracional que deveria ser resolvida antes que o conflito histórico significativamente maior contra o menchevismo travasse o seu combate final.

O conflito entre Lenin e os bolcheviques ultra-esquerdistas foi centrado na questão da participação no reacionário órgão parlamentar czarista. Por trás dessa diferença paira o reconhecimento de Lenin de que um período reacionário havia se estabelecido, requerendo contenção tática por parte do partido revolucionário. A primeira batalha ocorreu na conferência de julho de 1907 do POSDR para determinar a política nas próximas eleições da Duma. Lenin ainda acreditava que a Rússia estava passando por um período geral de reação e considerava boicotar as eleições taticamente injustificável:

“Considerando que,

(1) boicote ativo, como mostrou a experiência da revolução russa, é a tática correta por parte dos socialdemocratas apenas sob condições de um avassalador, global e rápido levante da revolução, já transformando-se em levante armado, e apenas em conexão com os objetivos ideológicos da luta contra as ilusões constitucionais decorrentes da convocação da primeira assembléia constituinte do antigo regime;

(2) na ausência dessas condições a tática correta por parte do partido dos socialdemocratas revolucionários é chamar pela participação nas eleições, como foi o caso com a segunda Duma, até mesmo caso todas as condições de um período revolucionário ainda estejam presentes.” – “Rascunho de Resolução sobre a Participação nas Eleições para a Terceira Duma” (julho de 1907)

Ao apresentar essa resolução Lenin se encontrou em minoria entre os nove delegados bolcheviques na conferência. A resolução foi aprovada com os votos dos Mencheviques, membros do Bund, e socialdemocratas da Letônia e da Polônia; todos os bolcheviques, com a exceção de Lenin votaram contra.

Os boicotadores bolcheviques eram, com certeza, representados numa proporção exagerada nessa reunião do partido em particular. Lenin tinha apoio significativo para sua posição entre os quadros e na base dos Bolcheviques e foi rapidamente capaz de ganhar ainda mais. Entretanto, a tendência de ultra-esquerda de 1907-09 foi o mais significativo desafio à liderança de Lenin na organização bolchevique que ele já havia enfrentado. Os líderes ultra-esquerdistas – Bogdanov (que havia sido o principal seguidor de Lenin), Lunacharsky, Lyadov, Alexinsky, Krasin – eram bolcheviques muito proeminentes. Como nunca antes, a maioria dos militantes no campo bolchevique apoiou boicotar a Duma czarista nesse período. Apenas a enorme autoridade pessoal de Lenin preveniu o desenvolvimento de uma tendência de ultra-esquerda forte o suficiente para derrubá-lo e aos seus apoiadores no centro oficial bolchevique ou engendrar um racha majoritário.

Lenin foi ajudado nessa luta pelo caráter heterogêneo da tendência ultra-esquerdista. Uma questão tática pouco importante dividia os bolcheviques ultra-esquerdistas em dois grupos distintos, os otzovistas (“reconvocadores”) e os ultimatistas. Os otzovistas exigiam a imediata e incondicional reconvocação (retirada) da fração do POSDR na Duma. Os ultimatistas exigiam que a fração na Duma fizesse discursos inflamatórios, que levariam a autoridade czarista a expulsá-los ou pior. Na prática, ambas as políticas teriam o mesmo efeito e Lenin negou que havia uma divisão significativa entre os oponentes ultra-esquerdistas.

A posição de Lenin sobre a tendência de ultra-esquerda foi apresentada na forma de resolução numa conferência em junho de 1909 do conselho editorial estendido do Proletary, na verdade uma plenária da liderança central bolchevique. Nessa conferência, Bogdanov foi expulso da organização bolchevique. As passagens chave da declaração atestam:

“A luta revolucionária direta das amplas massas se seguiu de um severo período de contra-revolução. Se tornou essencial aos socialdemocratas adaptarem suas táticas revolucionárias à essa nova situação, e em conexão com isso, uma das tarefas mais excepcionalmente importantes se torna o uso da Duma como uma plataforma aberta para o propósito de ajudar a agitação socialdemocrata.

“Neste rápido curso de acontecimentos, entretanto, uma seção dos trabalhadores que haviam participado da luta revolucionária direta foi incapaz de realizar um salto para aplicar táticas socialdemocratas revolucionárias nas novas condições da contra-revolução, e continua simplesmente a repetir os slogans que haviam sido revolucionários no período da guerra civil aberta, mas que agora, se meramente repetidos, poderão retardar o processo de fechar as fileiras do proletariado nas novas condições de luta.” [ênfase no original] – “Sobre Otzovismo e Ultimatismo”

A resposta de Bogdanov a Lenin é resumida em sua “Carta a Todos os Camaradas”, de 1910, um documento fundacional de seu próprio grupo independente:

“Algumas pessoas entre seus representantes no comitê executivo – o centro bolchevique – que vivem no exterior, chegaram à conclusão de que nós devemos mudar radicalmente a nossa avaliação bolchevique do presente momento histórico e manter uma linha não em direção a uma onda revolucionária, mas em direção a um longo período de desenvolvimento constitucional pacífico. Isso os leva para perto da ala direita do nosso partido, os camaradas Mencheviques que sempre, independente de qualquer avaliação da situação política, lançavam formas de ativismo legal e constitucional, em direção a um “trabalho orgânico” e um “desenvolvimento orgânico.” – Robert V. Daniels, ed., A História Documental do Comunismo (1960)

A frase de Bogdanov sobre “um longo período de desenvolvimento constitucional pacífico” é ambígua, talvez de forma deliberada. Contra muitos mencheviques, Lenin não considera uma nova revolução como fora da agenda por uma época histórica inteira, ou seja, por muitas décadas. Em torno de 1908 ele concluiu que antes de outro levante revolucionário (como o de 1905) haveria um longo período em termos das perspectivas de trabalho do partido e relativas às experiências e expectativas passadas dos Bolcheviques. 1908 não era 1903. E essa realidade era precisamente o que os otzovistas/ultimatistas negavam.



Filosofia e Política

Otzovismo/ultimatismo estava associado com o dualismo idealista neo-kantiano representado pelo físico e filósofo austríaco Ernst Mach, uma doutrina filosófica então muito em voga nos círculos intelectuais da Europa central. O livro de Bogdanov Empiriomonismo (1905-06) foi uma tentativa ambiciosa de reconciliar o marxismo com o neo-kantianismo. Em 1908 o companheiro de tendência de Bogdanov, Lunacharsky, aprofundou este idealismo em espiritualismo definitivo, posicionando a necessidade de uma religião socialista. A “construção de deus” de Lunacharsky foi, nem é preciso dizer, uma grande vergonha para os Bolcheviques como um todo, e até mesmo para a tendência otzovista/ultimatista.

A simpatia de Bogdanov pela doutrina filosófica neo-kantiana era não só bem conhecida como também de longa data. Até quando Bogdanov foi o representante de Lenin, e não representava em si mesmo uma tendência política distinta, seu neo-kantianismo era considerado uma particularidade pessoal entre ambos Mencheviques e Bolcheviques. Mas uma vez que Bogdanov tinha se tornado o líder de uma tendência distinta e por um tempo significativa na socialdemocracia russa, suas visões filosóficas se tornaram foco de uma controvérsia política geral. Plekhanov, em particular, explorou a doutrina de Bogdanov para atacar o programa bolchevique como o produto de um flagrante idealismo subjetivo. Lenin gastou assim a maior parte de 1908 estudando para uma polêmica maior com o neo-kantianismo de Bogdanov, Materialismo e Empiriocriticismo, para livrar o bolchevismo da mancha do idealismo filosófico.

A colaboração política próxima de Lenin com Bogdanov, apesar do posterior neo-kantianismo por um lado, e sua polêmica massiva contra as visões filosóficas de Bogdanov, por outro, foram usadas para justificar desvios simétricos nessas questões por marxistas pseudo-revolucionários. Que o neo-kantiano Bogdanov foi um importante líder bolchevique é algumas vezes citado para argumentar por uma atitude de indiferença diante do materialismo dialético, uma crença de que a mais geral e abstrata expressão da visão de mundo marxiana não tem implicação na política prática e relação organizativa associada. Quando rompeu com o trotskismo em 1940, o revisionista norte-americano Max Shachtman justificou um bloco com o anti-dialético e empiricista James Burnham citando o “precedente” de Lenin e Bogdanov.

Por outro lado, a polêmica principal de Lenin contra um desvio idealista adversário do marxismo encorajou a tendência a “aprofundar” cada luta fracional trazendo questões filosóficas – reduzindo todas as diferenças políticas à questão única do materialismo dialético. Essa mistura de pomposidade e idealismo racional se tornou uma marca do grupo britânico de Healy. (O grupo de Gerry Healy/Michael Banda se tornou tão bizarro que ele não pode mais ser levado a sério, muito menos nas suas mistificações filosóficas).

Os membros do grupo de Healy justificaram seu racha de 1972 com os antes parceiros de bloco, os neo-kautskistas franceses da Organização Comunista Internacionalista (OCI), colocando a primazia da “filosofia”. Eles apelaram para a polêmica de 1908 de Lenin contra Bogdanov como um precedente ortodoxo:

“Lenin estudou incansavelmente as idéias do novos idealistas, os neo-kantianos, na filosofia, até mesmo durante a mais árdua luta prática para estabelecer o partido revolucionário na Rússia. Quando essas idéias, na forma de “empiriocriticismo” foram reivindicadas por uma seção dos próprios Bolcheviques, Lenin fez um estudo especializado e lhes escreveu um longo trabalho, Materialismo e Empiriocriticismo.

“Lenin entendeu muito bem que os anos da extrema dificuldade e isolamento após a derrota da revolução de 1905 expuseram o movimento revolucionário à maior pressão do inimigo de classe. Ele sabia que a tarefa mais fundamental de todas era a defesa e o desenvolvimento da teoria marxista no nível mais básico, aquele da filosofia.” [nossa ênfase] – Comitê Internacional, Em Defesa do Trotskismo (1973)

Essa passagem é uma completa falsificação em diversos níveis. Para começar, a luta política de Lenin mais historicamente importante no período de reação não foi contra os bolcheviques de ultra-esquerda de Bogdanov, mas contra os mencheviques liquidacionistas. Nessa luta posterior, questões filosóficas não desempenharam nenhum papel particular.

Lenin jogando xadrez com Bogdanov em Capri Roger Viollet Paris

Lenin jogando xadrez com Bogdanov em Capri

Os membros do grupo de Healy também falsificam a relação de Lenin com Bogdanov. Quando Bogdanov se tornou parte da liderança Bolchevique em 1904, ele já era bem conhecido como neo-kantiano (machiano). Lenin e Bogdanov concordavam que a tendência Bolchevique como tal não tomaria posição em controversas questões filosóficas, Lenin explica isso numa carta para Maxim Gorky, (25 de fevereiro de 1908) na qual ele defende seu relacionamento passado com Bogdanov, apesar de seu desvio filosófico posterior:

“No verão e outono de 1904, Bogdanov e eu atingimos uma completa concordância, como bolcheviques, e formamos um bloco tácito, que de forma tácita tratava filosofia como um campo neutro, que existiu ao longo da revolução e nos permitiu na revolução levantar juntos as táticas da socialdemocracia revolucionária (bolchevismo), as quais, eu estou profundamente convencido, eram as únicas táticas corretas.” [ênfase no original]

Foi o menchevique de direita Plekhanov quem trouxe a questão de materialismo dialético versus neo-kantianismo para o topo da pilha com o objetivo de descreditar e rachar a liderança bolchevique revolucionária. Ao defender os Bolcheviques contra Plekhanov, Lenin foi tão longe a ponto de negar que a questão do revisionismo neo-kantiano fosse em todo relevante para o movimento revolucionário na Rússia. No congresso só composto pelos Bolcheviques em abril de 1905, Lenin declarou:

“Plekhanov puxa Mach e Avenarius pelas orelhas. Ele não consegue entender nem para salvar a vida de alguém o que esses escritores, pelos quais eu não tenho a mais estreita simpatia, tem a ver com a questão da revolução social. Eles escreveram sobre experiência de organização individual e social, ou tema semelhante, mas eles nunca realmente pensaram em nada a respeito da ditadura democrática.” – “Relatório sobe a Questão da Participação dos socialdemocratas num Governo Provisório Revolucionário” (abril de 1905)

Em parte como resultado de sua luta posterior contra Bogdanov, Lenin modificou sua posição de 1905, que desenhava uma linha muito arbitrária entre diferenças políticas e filosóficas. Ele constatou que diferenças fundamentais entre marxistas sobre materialismo dialético vão provavelmente produzir divergências políticas. Entretanto, para Lenin o programa permanecia primário para a definição de políticas revolucionárias e associado à questão organizativa. Lenin nunca repudiou sua colaboração próxima com Bogdanov em 1904-07. E ele estava absolutamente certo em se aliar com o Bogdanov socialdemocrata revolucionário, apesar de neo-kantiano, contra o o Plekhanov socialdemocrata pró-liberal, apesar de materialista dialético. Apenas quando as concepções neo-kantianas de Bogdanov se tornaram associadas com um programa político contrário e anti-marxista, foi que Lenin fez a defesa do materialismo dialético contra o idealismo filosófico uma tarefa política central.



Contra a Mistificação da Dialética

O programa marxista como a expressão científica dos interesses da classe trabalhadora e do progresso social não é derivado simplesmente de um desejo subjetivo por um futuro socialista. O programa marxista necessariamente inclui um entendimento correto da realidade, da qual a mais geral ou abstrata expressão é o materialismo dialético. Entretanto, o próprio Marx escreveu em 1877 no jornal populista russo, Otechestvenniye Zapiski, que ele não oferece uma “teoria histórico-filosófica geral, a virtude suprema a qual consiste em ser supra-histórico” (Marx e Engels, Correspondência Selecionada [1975]). O materialismo dialético é um quadro conceitual que permite, mas não garante, um entendimento científico da sociedade em seu desenvolvimento histórico concreto. Em outras palavras, um entendimento da natureza dialética da realidade social guia um complexo de generalizações históricas (por exemplo, que o aparato estatal sob o capitalismo não pode ser reformado em um órgão de administração socialista, que em nossa época um sistema econômico coletivizado representa a dominação social do proletariado) que dão base aos princípios programáticos marxistas.

A mistificação do grupo de Healy da atitude marxista com relação á filosofia é um produto de sua degeneração em um bizarro culto ao mestre. No começo de 1960, a Liga Operária Socialista (SLL) de Healy entendia que materialismo dialético não era nada mais do que uma expressão generalizada de uma visão de mundo unitária, e não um esquema abstrato ou método existente independente da realidade empírica. Os artigos de 1962-63 de Cliff Slaughter sobre os estudos de Lenin sobre Hegel em 1914-15, reimpressos em 1971 como um livro, Lenin sobre Dialética, contém um ataque mordaz conta a idealização da dialética:

“Lenin dá grande ênfase à insistência de Hegel de que a dialética não é uma chave-mestra, um tipo de estojo de números mágicos pelos quais todos os segredos são revelados. É errado pensar na lógica dialética como alguma coisa completa em si mesma e então 'aplicada' a exemplos particulares. Ela não é um modelo de interpretação para ser aprendido, e então enquadrado na realidade a partir de fora; a tarefa é mais descobrir a lei de desenvolvimento da realidade em si própria….

“A ciência da sociedade fundada por Marx não tem espaço na filosofia como tal, na idéia de pensamento independente em movimento, com um desenvolvimento subjetivo-material próprio, independente da realidade mas às vezes descendo para se aplicar nela.”

Slaughter cita então o julgamento de Marx sobre o conceito de filosofia na Ideologia Alemã: “Quando a realidade é representada, a filosofia, como um ramo independente de atividade perde o seu meio de existência.”

Mas no fim da década de 1960, o grupo de Healy havia “redescoberto” um meio de existência para a filosofia como uma teoria independente. O materialismo dialético foi apresentado com muita pomposidade como a “teoria do conhecimento do marxismo”, como uma expressão da categoria filosófica conhecida como epistemologia. Assim, em uma coleção de documentos sobre o racha com a OCI (Romper com o Centrismo! [1973]), nós podemos ler:

“O que foi mais essencial na preparação das seções foi desenvolver o materialismo dialético numa luta para entender e transformar a consciência da classe operária para a mudança da condições objetivas. Isso significa entender e desenvolver o materialismo dialético como a teoria do conhecimento do marxismo….

“Nós podemos certamente dizer que o materialismo dialético é a teoria do conhecimento do marxismo, no caminho do enfrentamento entre o erro e a verdade – não verdade “final”, mas avanços contínuos através da luta contraditória para chegar ao verdadeiro conhecimento do mundo objetivo.”

Essa noção do grupo de Healy sobre materialismo dialético é ao mesmo tempo enormemente restritiva e uma idealização do conhecimento. Não existe uma teoria do conhecimento válida em separado. No nível da cognição individual, uma teoria do conhecimento é derivada de investigação científica biológica e psicológica. No nível da consciência social, uma teoria do conhecimento é parte constituinte de um entendimento de relações sociais historicamente específicas. Assim, é central para o entendimento marxista de conhecimento o conceito de falsa consciência, a distorção necessária da realidade associada a vários papéis sociais.

Lunacharsky Dietz Verlag

Lunacharsky

A categoria filosófica tradicional da epistemologia (em ambas suas formas empiricista e racionalista), ao separar o sujeito consciente da natureza e da sociedade, é em si própria uma expressão ideológica de uma falsa consciência. O materialismo dialético critica os vários conceitos tradicionais de epistemologia assim como outros conceitos e categorias filosóficas. Mas o marxismo não critica a filosofia tradicional se colocando como uma filosofia nova, alternativa, que de forma semelhante existe independentemente de um entendimento cientifico (ou seja, empiricamente verificável) da natureza e da sociedade.

A mistificação do grupo de Healy sobre o materialismo dialético - “o caminho do enfrentamento entre o erro e a verdade” – é primariamente uma justificativa para a infalibilidade do culto ao mestre. O programa, análise, táticas e projeções da liderança de Healy são postas como isentos de verificação empírica. Por exemplo, até hoje o grupo de Healy considera que Cuba é capitalista! Dizem aos críticos e opositores que estes não entendem a realidade; sendo essa capacidade monopolizada pela liderança, que sozinha dominou o método dialético. Essa similaridade entre a visão do grupo de Healy sobre dialética e o misticismo religioso não é uma coincidência.

Para resumir, a rejeição sistemática do materialismo dialético (por exemplo, Bogdanov, Burnham) levará cedo ou tarde a um rompimento com o programa marxista científico. Mas acreditar, como Healy, que toda diferença política séria dentro de um partido revolucionário pode ou deve ser reduzida a conceitos filosóficos antagônicos é uma espécie de idealismo racional. Tal reducionismo filosófico nega que diferenças políticas normalmente surgem de diversas pressões e influências sociais que atingem a vanguarda revolucionária e seus componentes, e também diferenças ao avaliar as condições e possibilidades empíricas.

Significado da Luta Contra Otzovismo/Ultimatismo

O fim da luta fracional entre os leninistas e os otzovistas/ultimatistas ocorreu na previamente mencionada conferência de julho de 1909 do conselho editorial estendido do Proletary. A conferência decidiu que bolchevismo “não tem nada em comum com otzovismo ou ultimatismo, e que a ala bolchevique do partido deve o mais resolutamente combater estes desvios do marxismo revolucionário”. Quando Bogdanov se recusou a aceitar essa resolução, ele foi expulso da tendência Bolchevique.

Como nós apontamos no primeiro capítulo desta série, ao justificar a expulsão de Bogdanov Lenin claramente reafirmou sua aderência à doutrina kautskista de que o partido deveria incluir todos os socialdemocratas (ou seja, socialistas orientados para a classe operária). Ele fazia uma distinção afiada entre o “partido” kautskista e uma tendência, sendo que a última requeria um programa político e perspectivas homogêneos:

“Em nosso partido o bolchevismo é representado pela tendência Bolchevique. Mas uma tendência não é um partido. Um partido pode conter uma gama inteira de opiniões e correntes de pensamento, cujos extremos podem ser diretamente contraditórios. No partido alemão, lado a lado com a pronunciadamente ala revolucionária de Kautsky, vemos a ala ultra-revisionista de Bernstein. Não é esse o caso com uma tendência. Uma tendência ou seção de um partido é um grupo de pessoas com pensamento próximo formada com o propósito primário de influenciar o partido para uma determinada direção, com o objetivo de assegurar a aceitação dos seus princípios na forma mais pura possível. Para fazer isso, unanimidade real de opinião é necessária. Os diferentes níveis que são colocados para unidade de partido e unidade de tendência devem ser analisados por todos que desejam saber como as questões de discordância interna na tendência Bolchevique realmente ocorrem.” [ênfase no original] – “Relatório sobre a Conferência do Conselho Editorial Estendido do Proletary” (Julho de 1909)

Depois da expulsão de Bogdanov, ele e seus aliados estabeleceram seu próprio grupo ao redor do jornal Vperyod, deliberadamente escolhendo o nome do primeiro órgão bolchevique (de 1905). Os Vperyodistas reivindicavam aos membros dos Bolcheviques serem o verdadeiro bolchevismo. Embora muitos trabalhadores bolcheviques tenham apoiado a posição otzovista/ultimatista sobre participação na Duma, eles não desejavam romper com a organização de Lenin por causa desta questão. Assim, Lenin teve que combater atitudes ultra-esquerdistas difusas nas colunas bolcheviques durante alguns anos seguintes até que as tendências otzovistas/ultimatistas tivessem se dissipado por completo.

A reivindicação otzovista/ultimatista de representar a verdadeira tradição bolchevique, e de que Lenin havia se tornado um conciliador menchevique, não poderiam ter sido desconsideradas de primeira como ridículas. Bogdanov, Lyadov, Krasin e Alexinsky tinham estado entre os principais seguidores de Lenin, o antigo núcleo do centro bolchevique. Lunacharsky tinha sido um proeminente propagador e orador bolchevique. Assim, os Mencheviques atacaram Lenin sob o aspecto da deserção de seus mais conhecidos e talentosos colaboradores. Através da luta fracional de 1907-09 contra otzovismo/ultimatismo, uma nova liderança leninista foi cristalizada a partir de quadros bolcheviques mais jovens – Zinoviev, Kamenev, Rykov, Tomsky e um pouco depois Stalin. Esse seria o núcleo central da liderança bolchevique no primeiro período do regime soviético.

Como se explica o fato de que a maior parte da primeira geração de líderes bolcheviques desertaram para o ultra-esquerdismo, dando lugar a uma segunda geração que assimilou o leninismo em seu desenvolvimento maduro? Os bolcheviques se originaram não apenas como a ala revolucionária da socialdemocracia russa, mas também como empiricamente otimistas sobre as perspectivas da luta revolucionária. E esse otimismo autoconfiante foi corroborado pelo acontecimentos. O período de 1903 a 1907 foi em geral um período numa linha crescente de luta revolucionária que permitiu que os Bolcheviques se tornassem um partido de massas. É fácil entender então, que um setor dos Bolcheviques não ficaria desejoso de encarar o fato de uma vitória reacionária que iria exigir um amplo recolhimento organizativo. Esses bolcheviques reagiram a uma realidade desfavorável com um radicalismo dogmático, estéril, que em última análise tomava a forma de espiritualismo socialista. É uma marca de Lenin como grande político revolucionário o fato de ele ter reconhecido por completo a vitória da reação e ter adaptado as perspectivas da vanguarda revolucionária de acordo, apesar de isso ter significado romper com alguns dos seus colaboradores mais próximos até então.

Lenin

O Racha Final com os Mencheviques

Seguindo o golpe de Stolypin em junho de 1907, o Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR) foi posto na ilegalidade e seus representantes na Duma presos. Restos do partido poderiam continuar a existir em organizações operárias legais ou semi-legais (por exemplo, sindicatos, cooperativas), mas o partido como tal só poderia existir como uma organização clandestina. O programa completo do partido só poderia ser apresentado na imprensa ilegal. No fim de 1907 – começo de 1908, os comitês locais do POSDR teriam que entrar na clandestinidade se quisessem sobreviver como órgãos funcionais.

A necessária transformação em uma organização clandestina iria, por si própria, resultar numa considerável contração no partido. Muitos trabalhadores crus e intelectuais radicalizados ganhos para o partido durante o período revolucionário não se sentiam confortáveis ou se sentiam incapazes de funcionar como uma rede secreta. Além do mais, a onda de desespero que arrastou as massas trabalhadoras com a vitória da reação czarista reforçou o êxodo do POSDR ilegal e perseguido. Em torno de 1908, o POSDR só pôde existir como uma rede relativamente estreita de revolucionários comprometidos.

Liquidacionismo Menchevique e seus Propósitos

Assim, as condições de 1908 ressuscitaram as diferenças organizativas originais que haviam dividido a socialdemocracia russa entre Bolcheviques e Mencheviques. Como nós vimos, no congresso “de reunificação” de 1906, os Mencheviques aceitaram a definição do critério para ser membro de Lenin porque, sob as condições relativamente abertas que prevaleciam naquele momento, participação e disciplina organizativa formal não era um impedimento para um amplo recrutamento. Mas em 1908 a velha disputa entre um partido estreito e centralizado contra uma organização ampla e amorfa prorrompeu com fúria renovada.

A maior parte dos quadros mencheviques não seguiu os Bolcheviques rumo à clandestinidade. Sob a liderança de A.N. Potresov, o membro de liderança da sua tendência na Rússia, os militantes mencheviques se limitaram às organizações operárias legais e se dedicaram a produzir uma imprensa legal. Esses ativistas socialdemocratas, sujeitos a nenhuma disciplina ou organização partidária, apesar disso se consideravam membros do POSDR e assim eram considerados pela liderança menchevique no estrangeiro. Lenin denunciou essa política menchevique como liquidacionismo, uma dissolução do POSDR na prática, para dar lugar a uma movimento amorfo baseado em políticas trabalhistas-liberais.

O conflito bolchevique-menchevique sobre o liquidacionismo não pode ser analisado simplesmente como uma expressão de princípios organizativos antagônicos. O liquidacionismo menchevique era fortemente condicionado pelo fato de que os Bolcheviques tinham a maioria dos órgãos de liderança do POSDR oficial. O liquidacionismo era uma forma extrema de uma tendência mais geral dos Mencheviques de se dissociarem da liderança leninista do POSDR.

No fim de 1907 a delegação do POSDR na nova Duma, na qual os Mencheviques eram maioria, declarou sua independência do centro do partido no exílio, argumentando que essa era uma proteção legal necessária. Negar publicamente a subordinação dos delegados na Duma à liderança do partido no exílio poderia ter sido uma medida de segurança legítima. Mas os parlamentares mencheviques deram a essa proteção legal um conteúdo político real. As ações oportunistas dos parlamentares mencheviques reforçaram os ultra-esquerdistas bolcheviques, que desejavam boicotar a Duma de uma vez. É bom lembrar que nesse momento os ultra-esquerdistas eram uma tendência dentro dos Bolcheviques, como explicamos no capítulo cinco dessa série.

No começo de 1908, a liderança dos Mencheviques no exílio (Martov, Dan, Axelrod, Plekhanov) restabeleceu o seu órgão fracional, o Golos Sotsial-Demokrata (Voz do Socialdemocrata). Em meados de 1908 o membro do Comitê Central residente na Rússia, M.I. Broido, se retirou ostensivamente em protesto contra as expropriações armadas dos Bolcheviques. Por volta do mesmo período, os dois membros mencheviques do Comitê Central no exterior, B.I. Goldmann e Martynov, fizeram circular um memorando declarando que, em vista do estado desorganizado do movimento na Rússia, a liderança oficial do partido não iria mais emitir instruções, mas ao invés disso se limitar a passivamente monitorar a atividade socialdemocrata.

Se estivesse Martov, ao invés de Lenin, no comando do POSDR oficial, os Mencheviques teriam sem dúvida sido absolutamente leais à organização partidária estabelecida (e mais, teriam usado impiedosamente as regras do partido como uma espada para cortar os Bolcheviques em pedaços). Entretanto, como eram contra os leninistas, os Mencheviques se opuseram por princípio a definir o partido socialdemocrata como uma organização clandestina. A posição de Martov com relação a uma organização clandestina e o partido é precisamente explicada na edição de agosto-setembro de 1909 do Golos Sotsial-Demokrata:

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“… uma organização mais ou menos definida e até um certo ponto conspirativa agora faz sentido (e grande sentido) apenas até onde ela toma parte na construção de um partido socialdemocrata, que por necessidade é menos definido e tem seus pontos de apoio nas organizações abertas dos trabalhadores.” [ênfase no original]
– citado em Israel Getzler, Martov (1967)

Essa posição por limitar o significado da clandestinidade representava ao mesmo tempo um desejo por respeitabilidade liberal-burguesa e uma tendência para identificar o partido com as organizações operárias amplas, inclusivas.

Os Mencheviques estavam prontos para se engajar numa atividade ilegal, clandestina para dar prosseguimento ao seu próprio programa e forma de organização, enquanto se opunham a um partido clandestino como tal. Começando em 1911, os Mencheviques liquidacionistas criaram a sua própria rede clandestina, embora ela não fosse tão efetiva quanto à dos Bolcheviques e nem tivesse a sua influência de massa.

O liquidacionismo menchevique de 1908-12 foi uma expressão extrema do oportunismo socialdemocrata resultante dos fatores principais a seguir: 1) um desejo por respeitabilidade liberal-burguesa; 2) uma tendência geral para identificar o partido com as organizações operárias amplas, inclusivas; 3) o fato de que tais organizações eram legais, enquanto o partido não poderia ser; 4) A liderança de Lenin no POSDR oficial; e 5) a fraqueza organizativa dos Mencheviques.

A Batalha se Desenvolve

A batalha sobre o liquidacionismo foi primeiramente desenvolvida de maneira formal na conferência do POSDR ocorrida em Paris em dezembro de 1908.

Nessa conferência os Bolcheviques tinham cinco delegados (três deles ultra-esquerdistas) e seus aliados, os socialdemocratas poloneses de Luxemburgo e Jogiches, tinham cinco; já os Mencheviques tinham três delegados e seu aliado, o Bund Judaico, tinha três.

Todos os participantes dessa conferência (com exceção dos bolcheviques ultra-esquerdistas) reconheceram que a situação revolucionária havia definitivamente acabado, e que um período indefinido de reação esperava à frente. As tarefas e perspectivas do partido deveriam mudar de acordo. Nesse contexto Lenin apontou a necessidade de primazia por uma organização ilegal do partido. A resolução de Lenin nessa questão foi aprovada, com os Mencheviques votando contra e os membros do Bund se dividindo:

“… as condições políticas mudadas fazem com que seja crescentemente impossível realizar a atividade socialdemocrata dentro do quadro das organizações operárias legais e semi-legais….

“O partido deve devotar particular atenção à utilização e reforço das organizações ilegais, semi-legais e legais, onde possível, que já existem – e à criação de novas delas – que possam servir como fortes pontos para trabalho de propaganda, agitação e organização prática entre as massas…. Esse trabalho será possível e dará frutos apenas se existir em cada empresa industrial um comitê de trabalhadores, consistindo somente de membros do partido, ainda que sejam poucos em número, que estarão intimamente ligados às massas, e se todo o trabalho das organizações legais for conduzido sob a liderança de uma organização partidária ilegal.” [nossa ênfase] – Robert H. McNeal, ed., Resoluções e Decisões do Partido Comunista da União Soviética (1974)

Lenin usou sua maioria na conferência de 1908 do POSDR para condenar o liquidacionismo por esse nome, apresentando-o como uma expressão da instabilidade e do carreirismo da intelectualidade radical:

“Notando que em muitos lugares uma seção da intelligentsia do partido está tentando liquidar a organização existente do POSDR e substituí-la por uma amalgamação disforme dentro do quadro da legalidade, não importa o quanto isto custe – até mesmo o preço da rejeição aberta ao programa, tarefas e tradições do partido – a conferência considera essencial conduzir a mais resoluta luta ideológica e organizativa contra esses esforços liquidacionistas….” – Idem.

Como já foi discutido (no capítulo um), Lenin considerava o menchevismo uma expressão dos interesses e atitudes da intelectualidade radical, ao invés de uma corrente oportunista interna ao movimento dos trabalhadores. Aqui Lenin seguiu a metodologia de Kautsky, que localizava as bases sociológicas do revisionismo em companheiros de viagem pequeno-burgueses da socialdemocracia.

Os Mencheviques de forma semelhante acusavam os Bolcheviques de Lenin de representar um desvio pequeno-burguês … anarquismo. Por exemplo, no começo de 1908 Plekhanov descreveu o lançamento do órgão menchevique, Golos Sotsial-Demokrata, como um primeiro passo em direção ao “triunfo dos princípios socialdemocratas sobre o bakuninismo bolchevique” (citado em Leonard Shapiro, O Partido Comunista da União Soviética [1960]). Os Mencheviques explicaram o apoio dos Bolcheviques no seio da classe operária argumentando que os leninistas demagogicamente exploravam o primitivismo do proletariado russo, um proletariado ainda ligado fortemente ao campesinato.

Assim, ambos os lados acusavam o outro de não serem verdadeiros socialdemocratas (ou seja, socialistas orientados para a classe operária). Os Bolcheviques viam os Mencheviques como democratas pequeno-burgueses, a ala esquerda do liberalismo, os filhotes radicalizados dos Cadetes. Os Mencheviques condenavam os Bolcheviques como anarquistas pequeno-burgueses, radicais populistas disfarçados de socialdemocratas. Essas acusações mútuas não eram demagogia ou exageros polêmicos; eles genuinamente expressavam a forma com a qual os Bolcheviques viam os Mencheviques e vice-versa. Uma vez que ambos os partidos aderiam aos princípio de um partido unitário de todos os socialdemocratas, os Bolcheviques e os Mencheviques só poderiam justificar seu racha declarando que o outro grupo não era realmente parte do movimento proletário socialista.

Mencheviques Pró-partido e Conciliadores Bolcheviques

No fim de 1908 a campanha de Lenin contra os liquidacionistas ganhou apoio da fonte mais inesperada possível … Plekhanov. O grande velho homem do marxismo russo rompeu de forma aguda com a liderança menchevique, estabeleceu seu próprio jornal, Dnevnik Sotsial-Demokrata (Diário do Socialdemocrata), e atacou o abandono das organizações partidárias estabelecidas em palavras e tom similares aos de Lenin.

O comportamento político de Plekhanov entre 1909-11 é de cara algo intrigante, já que ele tinha até então estado na ala extrema direita dos Mencheviques em quase todas as questões, incluindo uma defesa voraz de um racha com Lenin. Considerações subjetivas podem ter desempenhado certo papel. Plekhanov era extremamente orgulhoso e pode muito bem ter se ressentido ao ser eclipsado pelos jovens líderes mencheviques (por exemplo Martov, Potresov). Ele pode ter considerado que uma estância de “menchevique pró-partido” lhe permitiria se restabelecer como a autoridade líder da socialdemocracia russa.

Entretanto, a posição anti-liquidacionista de Plekhanov não está em tamanha variância com sua visão política geral como possa parecer de primeira. Plekhanov sempre acreditou na necessidade de uma liderança marxista (ou seja socialista científica) sobre a espontaneidade da classe trabalhadora. Foi essa crença que o impeliu na luta intransigente contra o economicismo em 1900. Paradoxalmente, a posição de Plekhanov na ala direita durante a revolução de 1905 reforçou a sua descrença na espontaneidade das massas. Para Plekhanov, um forte partido socialdemocrata era necessário para reprimir o que ele acreditava fossem os impulsos anarquistas, primitivistas do proletariado russo. No conflito entre Plekhanov e os liquidacionistas russos, nós vemos a diferença entre um marxista ortodoxo pré-1914, comprometido com uma revolução democrático-burguesa na Rússia, e um grupo de reformistas do movimento operário primeiramente preocupados em defender os interesses econômicos imediatos dos trabalhadores russos.

Os mencheviques “pró-partido” de Plekhanov eram pequenos em número e apenas alguns deles no final se uniram aos Bolcheviques. O próprio Plekhanov se opôs a Lenin quando, na conferência de Praga em janeiro de 1912, o último declarou que os Bolcheviques eram o POSDR, criando assim um Partido Bolchevique em separado. Entretanto, o impacto dos mencheviques “pró-partido” de Plekhanov na luta entre as tendências era amplamente desproporcional aos seus pequenos números. Plekhanov retinha grande autoridade no movimento socialdemocrata internacional e na Rússia. Suas estridentes acusações de que os principais órgãos mencheviques estavam liquidando o partido socialdemocrata reforçou enormemente a credibilidade da posição de Lenin, uma vez que Plekhanov não poderia ser facilmente acusado de distorção tendenciosa ou exagero. Os poucos mencheviques “pró-partido” que se juntaram aos Bolcheviques em 1912 adicionaram muita legitimidade à reivindicação de Lenin de representar o POSDR oficial.

Por volta de 1909, os Bolcheviques e Mencheviques na Rússia haviam se separado em dois grupos distintos competindo por influência de massa. Numa conferência da liderança Bolchevique em meados de 1909, Lenin argumenta que a tendência Bolchevique havia na prática se tornado o POSDR:

“… uma coisa deve ser posta de maneira firme em mente: a responsabilidade de 'preservar e consolidar' o POSDR, da qual a resolução trata, agora repousa primariamente, se não completamente, na tendência Bolchevique. Todo, ou praticamente todo, o trabalho do partido em progresso, particularmente nos municípios, agora está sendo levado nos ombros dos Bolcheviques.” [nossa ênfase] – “Relatório sobre a Conferência do Conselho Editorial Estendido do Proletary” (julho de 1909)

Ao mesmo tempo ele sublinhou a importância de unidade com os mencheviques “pró-partido” de Plekhanov:

“Quais são afinal as tarefas dos Bolcheviques em relação a esta até então pequena seção dos Mencheviques que estão lutando contra o liquidacionismo? Os Bolcheviques devem sem dúvida buscar reaproximação com essa seção, com aqueles que são marxistas e desejosos de um partido.” [ênfase no original] – Op. cit.

A posição de Lenin de que os Bolcheviques (esperançosamente em aliança com os seguidores de Plekhanov) deveriam construir o partido sem e contra a maioria dos Mencheviques recebeu significativa resistência entre a liderança e também a base dos Bolcheviques. Uma forte tendência de conciliadores emergiu, liderada por Dobruvinsky (um antigo deputado na Duma), Rykov, Nogin e Lozovsky, que desejavam um compromisso político com os Mencheviques para poder restaurar um POSDR unificado.

De certa forma as forças de conciliação eram mais fortes em Berlim do que em São Petersburgo ou Moscou. A liderança do Partido Socialdemocrata Alemão (SPD) permaneceu sempre desejosa da unidade partidária na Rússia. Num clima particularmente sentimental, Kautsky expressou sua atitude sobre as tendências antagônicas na Rússia numa carta (5 de maio de 1911) para Plekhanov:

“… nesses dias eu recebi visitas de bolcheviques … mencheviques, otzovistas [ultra-esquerdistas], e liquidacionistas. Eles são todos pessoas amáveis e ao conversar com eles não se percebe grandes diferenças de opinião. - citado em Getzler, Op. cit.

A liderança do SPD abriu sua imprensa para o mais importante dos conciliadores russos – Trotsky. Os artigos de Trotsky na influente imprensa do SPD tornaram a opinião socialdemocrata internacional fortemente em favor da unidade do partido russo e contra os extremistas em ambos os lados, Lenin pelos Bolcheviques e Potresov pelos Mencheviques.

Lenin Luta por um Partido Bolchevique

Diante de um forte grupo pró-unidade em sua própria base e sob pressão dos mencheviques “pró-partido” de Plekhanov e a liderança do SPD, Lenin relutantemente concordou com uma nova tentativa de unidade. Essa foi a plenária de janeiro de 1910 ocorrida em Paris. A representação na plenária replicou uma formação próxima do último congresso do partido em 1907. Os Bolcheviques tinham quatro delegados (três deles conciliadores), assim como os Mencheviques. O Bund Judaico pró-menchevique tinha dois delegados assim como o Social Democracia dos Reinos da Polônia e Lituânia (SDRPeL) pró-bolchevique de Luxemburgo/Jogiches. Os nominalmente pró-bolcheviques socialdemocratas da Letônia e o grupo ultra-esquerdista do Vperyod tinham um delegado cada.

Na plenária, os elementos conciliatórios impuseram uma série de compromissos sobre a liderança das duas tendência principais. A composição fracional dos órgãos de liderança do partido (o Conselho Editorial do Órgão Central, o Escritório Estrangeiro e o Conselho Russo do Comitê Central) estabelecida no congresso de 1907 foi mantida. Paridade entre Bolcheviques e Mencheviques foi mantida em todos os órgãos do partido, posicionando assim a balança do poder nas mãos dos partidos socialdemocratas regionais.

Sobre a questão chave da clandestinidade, uma resolução de compromisso foi trabalhada. Se opor ou depreciar a organização clandestina foi condenado, mas o termo “liquidacionismo” foi evitado por causa de sua conotação anti-menchevique. Por outro lado, os Mencheviques tiveram a satisfação moral de condenar as expropriações armadas dos Bolcheviques como uma violação da disciplina do partido.

A artificialidade do acordo de “unidade” de 1910 foi indicada pela recusa dos Mencheviques em permitir que Lenin administrasse os fundos do partido. O tesouro do partido foi então depositado nas mãos de três membros de confiança alemães – Kautsky, Klara Zetkin e Franz Mehring. (Kautsky, que não era sentimental quando se tratava de dinheiro, posteriormente ficou com o tesouro do partido russo sob argumento de que ele não teria um corpo representativo de liderança legítimo). A atitude crítica e desconfiada de Lenin com relação aos resultados da plenária do Comitê Central de Paris foi expressa numa carta (11 de abril de 1910) para Maxim Gorky:

“Na plenária do C.C. (a “longa plenária” – três semanas de agonia, todos os nervos estavam à flor da pele, por mil demônios!) … havia um clima de 'conciliação em geral' (sem nenhuma idéia clara de com quem, pelo que, ou como); ódio contra o centro bolchevique por sua luta ideológica implacável; disputas na parte dos Mencheviques, que estavam pagando para brigar, e como resultado – nasceu uma monstruosidade de unidade, como um bebê coberto de pústulas.

“E nós também tivemos que sofrer. Ou – para melhor – nós cortamos as pústulas, deixamos sair o pus e curamos e erguemos o bebê.

“Ou para pior – o bebê morre. Então nós devemos ficar sem bebê por um tempo (isto é, nós devemos restabelecer a tendência Bolchevique) e então dar a luz a um bebê mais saudável.”

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Leo Jogiches

A desconfiança de Lenin nos Mencheviques foi rapidamente confirmada. Os mencheviques liquidacionistas na Rússia, liderados por P.A. Garvi, se recusaram terminantemente a entrar no conselho do Comitê Central russo como a plenária de Paris havia concordado. Assim, Lenin pôde pôr a culpa pelo racha nos Mencheviques e colocar os conciliadores bolcheviques na defensiva. Anos depois, Martov ainda ralhava com Garvi por seu erro tático, que muito ajudou Lenin.

No fim de 1910, Lenin declarou que os Mencheviques haviam quebrado os acordos feitos na plenária de Paris e que assim os Bolcheviques não estariam mais vinculados a eles. Em maio de 1911, Lenin chamou uma reunião de emergência da liderança bolchevique e seu aliados poloneses, que estabeleceram corpos paralelos para substituir os órgãos oficiais do POSDR, estabelecidos na plenária de Paris. Por exemplo, um Comitê Técnico foi formado para substituir o Escritório Estrangeiro do Comitê Central como o mais alto órgão administrativo do partido. Para Lenin esse foi um passo decisivo para construir um partido sem e contra os Mencheviques.

A essa altura os planos de Lenin foram impedidos pelo surgimento de um novo e temporariamente poderoso conciliador – Leo Jogiches, líder do SDRPeL. Jogiches era um formidável antagonista. Junto com os conciliadores bolcheviques (por exemplo, Rykov) ele tinha a maioria dos órgãos de liderança do partido, tais como o Comitê Técnico. Através de Rosa Luxemburgo ele influenciou os membros de confiança alemães que detinham as finanças do POSDR.

A luta de 1911 entre Jogiches e Lenin é geralmente considerada, particularmente por historiadores burgueses, como uma luta pessoal por poder. Entretanto, por trás da cisma entre o SDRPeL e os Bolcheviques de 1911-14 estava a diferença entre uma posição ortodoxa socialdemocrata sobre a questão do partido e o leninismo nascente. Luxemburgo/Jogiches estavam prontos para apoiar a tendência Bolchevique dentro de um partido socialdemocrata unitário. Porém, eles não apoiariam a transformação do grupo bolchevique em um partido reivindicando ser o único representante legítimo da socialdemocracia. E Jogiches entendia que isso era o que Lenin estava de fato fazendo. Em uma carta para Kautsky (30 de junho de 1911) a respeito de finanças, ele escreveu que Lenin “quer se usar do caos no partido para conseguir o dinheiro para sua própria tendência e aplicar um golpe fatal contra o partido como um todo….” (citado em J.P. Nettl, Rosa Luxemburgo [1961]).

A atitude de Lenin com Jogiches e os outros conciliadores é claramente expressa no rascunho do artigo, “O Estado de Coisas no Partido” (julho de 1911):

“Os 'conciliadores' não entenderam os caminhos ideológicos que nos mantém longe dos liquidacionistas, e dessa forma lhes deixaram uma série de lacunas e tem sido frequentemente (e involuntariamente) brinquedinhos nas mãos dos liquidacionistas….

“Desde a revolução, os Bolcheviques, como uma tendência, atravessaram dois erros – (1) otzovismo-Vperyodismo e (2) conciliacionismo (oscilando na direção dos liquidacionistas). É tempo de nos livrarmos de ambos.

“Nós Bolcheviques decidimos sob hipótese alguma repetir o (e não permitir uma repetição do) erro do conciliacionismo hoje. Isso significaria desacelerar a reconstrução do P.O.S.D.R., e entravá-lo num novo joguinho com as pessoas do Golos (ou seus lacaios, como Trotsky), os Vperyodistas e por aí a fora.” [ênfase no original]

No fim de 1911, Lenin rompeu com Jogiches e os conciliadores bolcheviques. Ele mandou um agente, Ordzhonikidze, para a Rússia, onde o último montou o Comitê Organizativo Russo (COR) que reivindicou ser o Comitê Central interino do POSDR. O COR chamou uma “conferência de toda a Rússia do POSDR”, que se reuniu em Praga em janeiro de 1912. Catorze delegados compareceram, doze bolcheviques e dois mencheviques pró-partido, um dos quais expressou a oposição de Plekhanov à conferência como um ato anti-unidade de partido.

A conferência decidiu que os liquidacionistas mencheviques deviam ficar de fora do POSDR. Ela também acabou com a estrutura nacional federada estabelecida no congresso de “reunificação” de 1906, de fato excluindo o Bund, o SDRPeL e os socialdemocratas da Letônia do partido russo. A conferência elegeu um novo Comitê Central, consistindo de seis Bolcheviques “rígidos” (anti-conciliadores) e um menchevique “pró-partido” para efeito simbólico. A conferência de Praga marcou um racha organizativo definitivo entre os socialdemocratas revolucionários de Lenin e os mencheviques oportunistas. Nesse importante sentido, Praga/1912 foi a conferência de fundação do Partido Bolchevique.

Lenin Buscou Unidade com os Mencheviques?

Antes mesmo de 1912, Lenin era comumente considerado um divisionista fanático, como a grande causa dos cismas na socialdemocracia russa. O significado histórico-mundial do racha bolchevique-menchevique é hoje universalmente reconhecido, e não menos por anti-leninistas. É portanto espantoso que alguém, particularmente um grupo que se reivindica leninista, possa manter que o líder bolchevique foi um fortíssimo defensor da unidade socialdemocrata, enquanto os mencheviques eram agressivos divisionistas.

No entanto essa é a posição levada adiante pelo revisionista “trotskista” Grupo Marxista Internacional, seção britânica do Secretariado Unificado de Ernest Mandel. Como justificativa teórica para uma grande manobra de reagrupamento, o GMI revisou a história dos Bolcheviques para fazer de Lenin um conciliador que prezava pela unidade acima de tudo. Se referindo ao período pós-1905, o GMI escreve:

“Longe de Lenin ser um divisionista, longe de propor meramente a 'unidade formal', os Bolcheviques eram os principais batalhadores da unidade do partido …. Eram os Mencheviques nesse período que eram os divisionistas e não Lenin.” – “A Tendência Bolchevique e a Luta por um Partido”, Red Weekly, 11 de novembro de 1976

A completa falsidade dessa posição é demonstrada por uma série de incríveis omissões. Esse artigo não menciona os verdadeiros conciliadores bolcheviques, como Rykov, e a luta de Lenin contra eles. Ele não menciona a plenária de “unidade” de Paris em 1910 e a oposição de Lenin aos compromissos lá firmados. Ele não menciona que os aliados de Lenin de outrora, Plekhanov e Jogiches/Luxemburgo, se opuseram à conferência de Praga em nome da unidade do partido e consequentemente denunciaram Lenin como um divisionista.

Essa é a análise do GMI sobre a conferência de Praga:

“A tarefa dos Bolcheviques e dos mencheviques pró-partido de reconsolidar o POSDR clandestino havia sido concluída no fim de 1911 – embora a esta altura o próprio Plekhanov tivesse desertado para o lado dos liquidadores. Essa reconsolidação foi finalizada no sexto congresso do partido ocorrido em Praga em janeiro de 1912. Nesse congresso não houve um racha com o menchevismo como tal – ao contrário … Lenin trabalhou para que fosse um congresso com uma seção dos Mencheviques. O racha não foi com aqueles que defendiam as políticas mencheviques, mas com os liquidacionistas que se recusavam a aceitar um partido.” [ênfase no original] – Op. cit.

Foram precisamente as políticas mencheviques sobre a questão organizativa que geraram o liquidacionismo. Do racha original de 1903 até a Primeira Guerra, os Mencheviques definiram que “o partido” deveria incluir trabalhadores simpatizantes da socialdemocracia, mas que não estavam sujeitos à organização formal e à disciplina como membros. Foi sobre essa base que os Mencheviques continuaram a rejeitar e desconsiderar a maioria formal e consequente liderança partidária de Lenin.

A declaração de que Plekhanov se juntou aos liquidacionistas em 1911 é falsa. E nessa falta de nitidez histórica o GMI demonstra sua falta de compreensão fundamental das relações entre os Bolcheviques e os mencheviques “pró-partido”. Plekhanov não se juntou ao corpo principal dos Mencheviques. Assim como Trotsky e Luxemburgo, ele adotou uma estância independente entre 1912-14, buscando a reunificação de Bolcheviques e Mencheviques.

O GMI não sabe explicar porquê Plekhanov, que lutou contra os liquidacionistas por três anos, se recusou então a romper com eles e se unir aos leninistas. Quando Plekhanov, que era notoriamente arrogante, começou sua campanha anti-liquidacionista no fim de 1908, ele sem dúvida acreditava que iria ganhar a maioria dos Mencheviques e possivelmente se tornar a figura de liderança de um POSDR unificado. Mesmo enquanto fazia um bloco com Plekhanov, Lenin teve a oportunidade de desfazer as ilusões para consumo próprio do dissidente menchevique:

“O menchevique Osip [Plekhanov] provou ser uma figura solitária, que se retirou tanto do conselho editorial menchevique oficial quanto do conselho editorial coletivo do mais importante trabalho menchevique, um manifestante isolado contra o 'oportunismo pequeno-burguês' e o liquidacionismo….” – “Os Liquidacionistas Expostos” (setembro de 1909)

Por volta de 1911, estava claro que os seguidores de Plekhanov eram uma pequena minoria entre os Mencheviques. Se Plekhanov tivesse se juntado aos Bolcheviques na conferência de Praga, ele teria constituído uma minoria pequena e politicamente isolada. Ele nunca poderia esperar ganhar os Bolcheviques para sua estratégia pró-burguesia liberal. Ele teria sido simplesmente um figura decorativa num partido de facto Bolchevique. Sendo um político astuto, Lenin tentou “capturar” Plekhanov dessa forma. Ao se recusar a participar da conferência de Praga, Plekhanov escreveu: “A composição de sua conferência é tão unilateral que seria melhor, ou seja, melhor para os interesses da unidade do partido, que eu ficasse de fora” (citado em Bertran D. Wolfe, Três que Fizeram uma Revolução [1948]).

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Mesmo antes de 1912, os Bolcheviques eram essencialmente um partido, mais do que uma tendência, porque Lenin se recusaria a agir como uma minoria disciplinada sob uma liderança menchevique. Os líderes mencheviques, incluindo Plekhanov, eram recíprocos nessa atitude. Unidade com os Mencheviques “pró-partido” numericamente inferiores não desafiava a liderança de Lenin no partido como ele o reconstruiu na conferência de Praga. Se os seguidores de Plekhanov fossem maiores que os Bolcheviques, então Lenin teria lutado por um outro arranjamento organizacional que permitiria a seus apoiadores agir como socialdemocratas revolucionários desimpedidos por oportunistas.

Tentativas de Unidade Depois de Praga

Depois da conferência de Praga, os Bolcheviques foram bombardeados com contínuas campanhas por unidade envolvendo a maioria das principais figuras no movimento russo e também da liderança da Segunda Internacional. Essa campanhas culminaram numa resolução pró-unidade do Bureau Socialista Internacional (BSI) em dezembro de 1913, que levou a uma conferência de “unidade” em Bruxelas em julho de 1914. Menos de um mês depois a maioria dos 'buscadores de unidade' da Segunda Internacional estavam apoiando suas próprias classes dominantes na matança de trabalhadores de países “inimigos”.

A primeira tentativa de reverter a ação de Lenin na conferência de Praga foi levada adiante por Trotsky. Ele pressionou o Comitê Organizativo menchevique para chamar uma conferência de todos os socialdemocratas russos. Os Bolcheviques naturalmente se recusaram a participar como fizeram seus antigos aliados, os seguidores de Plekhanov e o SDRPeL de Luxemburgo/Jogiches. A conferência se reuniu em Viena em agosto de 1912. Além do pequeno grupo de Trotsky, ela foi composta pelos Mencheviques em peso, o Bund Judaico e os ultra-esquerdistas do grupo Vperyod. O “bloco de agosto” combinava assim as alas de extrema direita e extrema esquerda da socialdemocracia russa. Naturalmente os participantes não poderiam concordar em nada exceto sua hostilidade aos leninistas por se declararem o POSDR oficial. De fato, os Vperyodistas saíram no meio da conferência, fazendo dela um fórum menchevique.

O bloco de agosto de Trotsky era um clássico e fugaz bloco centrista – uma coalizão podre dos mais heterogêneos elementos que eram contra uma tendência revolucionária rígida. Depois de ser ganho para o leninismo em 1917, Trotsky considerou o “bloco de agosto” como o seu maior erro político. Polemizando contra um outro bloco centrista de coalizão na seção americana da Quarta Internacional em 1940, Trotsky voltou no tempo até o “bloco de agosto” em 1912:

“Eu tenho em mente o assim chamado bloco de agosto de 1912. Eu participei ativamente desse bloco. De certa forma eu o criei. Politicamente eu era diferente dos Mencheviques em todas as questões fundamentais. Eu também me diferenciava dos Bolcheviques de ultra-esquerda, os Vperyodistas. Em questões de política geral, eu estava muito mais próximo dos Bolcheviques. Mas eu era contra o 'regime' leninista porque eu ainda não tinha compreendido que para conseguir o objetivo de realizar uma revolução, um partido centralizado e firmemente formado é necessário. E então eu formei esse bloco episódico consistindo de elementos heterogêneos que foi dirigido contra a ala proletária do partido….
“Lenin submeteu o bloco de agosto a críticas sem piedade e os mais duros golpes caíram sobre mim. Lenin provou que uma vez que eu não concordava politicamente nem com os Mencheviques nem com o Vperyodistas, minha política foi aventureirismo. Isso foi severo mas era verdade.”
Em Defesa do Marxismo (1940)

A consolidação de um partido bolchevique em separado na conferência de Praga coincidiu com o começo de uma nova linha ascendente da luta da classe proletária na Rússia. Nos dois anos e meio seguintes os Bolcheviques se transformaram novamente num partido proletário de massas. Em 1913, Lenin afirmava possuírem entre 30.000 e 50.000 membros. Nas eleições para a Duma no fim de 1912 os Bolcheviques elegeram seis de nove delegados na curia (seção de votação) dos trabalhadores. Em 1914, Lenin afirmava ter 2.800 núcleos operários contra 600 dos Mencheviques. O órgão legal dos Bolcheviques, o Pravda, tinha uma circulação de 40.000 exemplares, comparada com 16.000 do jornal menchevique Luch.

Privadamente os Mencheviques admitiam a predominância bolchevique no movimento operário, assim como sua própria fragilidade. Numa carta (15 de setembro de 1913) para Potresov, Martov escreveu “… os Mencheviques parecem incapazes de se afastar do centro morto no sentido organizativo e permanecem, apesar do jornal e de todos os esforços feitos nos últimos dois anos, um fraco círculo” (citado em Getzler, Op. cit.).

Enquanto a transformação dos Bolcheviques em um partido de massa nesse momento era de enorme significado para a causa revolucionária, em um sentido pode-se dizer que ela impediu o desenvolvimento teórico do leninismo. Os desenvolvimentos entre 1912-14 pareciam confirmar a crença de Lenin de que os Mencheviques eram simplesmente carreiristas pequeno-burgueses na Rússia e literatos emigrados permanecendo de fora do movimento real dos trabalhadores. A reivindicação dos Bolcheviques de serem o Partido Operário Social Democrata Russo pareceu demonstrar a sua comprovação empírica. E assim Lenin acreditava que ele não havia realmente dividido o partido socialdemocrata.

A conferência de Praga em janeiro de 1912 representou o racha definitivo entre Bolcheviques e Mencheviques, mas a divisão não foi compreensível. Os seis deputados bolcheviques eleitos para a Quarta Duma no fim de 1912 mantiveram uma frente comum com os sete deputados mencheviques numa bancada socialdemocrata unitária. Entre os trabalhadores menos avançados, um sentimento por unidade ainda era forte e isso criou resistência entre os Bolcheviques para desfazer a bancada na Duma através de um ato público, um ato público. Lenin orientou para que a bancada na Duma fosse desfeita, mas fez isso com considerável precaução tática. Apenas perto do fim de 1913 os deputados bolcheviques racharam abertamente e criaram sua própria bancada na Duma.

O racha na bancada da Duma causou um impacto muito maior do que a conferência de Praga na socialdemocracia internacional, uma vez que ele tornou a divisão no movimento russo totalmente pública. Por iniciativa de Rosa Luxemburgo, o BSI interviu para restaurar a unidade no aparentemente incorrigível e fracional movimento socialdemocrata russo. A política pró-unidade do BSI era necessariamente prejudicial, se não claramente hostil, aos Bolcheviques. Os motivos de Luxemburgo eram claramente hostis a Lenin. Ao exigir a intervenção da Internacional, ela denunciou “o esquemático incitamento pelo grupo de Lenin do racha entre a base de outras organizações socialdemocratas” (citado em H.H. Fischer e Olga Hess Gankin, eds., Os Bolcheviques e a Guerra Mundial [1940]).

Em dezembro de 1913, o BSI adotou uma resolução chamando a reunificação da socialdemocracia russa. Essa resolução foi co-patrocinada por três líderes alemães, Kautsky, Ebert e Molkenbuhr:

“… o Bureau Internacional considera dever urgente de todos os grupos socialdemocratas na Rússia fazer séria e leal tentativa de concordar com a restauração de uma organização partidária única a pôr um fim ao atual nocivo e desencorajador estado de desunião.”
Idem.

O BSI marcou então uma conferência de “unidade” em Bruxelas em julho de 1914. A autoridade da Internacional liderada pela Alemanha era tal que todos os socialdemocratas russos, incluindo os Bolcheviques, se sentiram obrigados a comparecer a essa reunião. Além dos Bolcheviques e Mencheviques, a conferência de Bruxelas foi composta por Vperyodistas, pelo grupo de Trotsky, pelo grupo de Plekhanov, os socialdemocratas da Letônia e três grupos poloneses.

Não é preciso dizer, Lenin foi hostil ao propósito da conferência de Bruxelas. Enquanto ele escrevia um longo relatório para ela, ela, mostrou seu desdém ao não comparecer pessoalmente. O cabeça da delegação bolchevique foi Inessa Armand. Lenin rascunhou “condições de unidade” que ele sabia que os Mencheviques iriam recusar de primeira. Essas envolviam a completa subordinação organizativa dos Mencheviques à maioria bolchevique, incluindo a proibição de uma imprensa menchevique separada e uma total abolição de críticas públicas ao partido clandestino. Quando Armand apresentou as “condições de unidade” de Lenin, os Mencheviques ficaram furiosos. Plekhanov rotulou as condições como “artigos de um novo código penal”. Kautsky, o presidente da conferência, teve dificuldade em manter a ordem. Apesar disso tudo, o respeitado líder alemão cumpriu seu dever ao apresentar uma moção atestando que não havia diferenças de princípio que barrassem a unidade. Essa resolução prosseguiu com os Bolcheviques (e também os socialdemocratas da Letônia) se recusando a votar.

A Justificativa de Lenin para o Racha

O relatório para a conferência de Bruxelas em julho de 1914 foi a mais elucidativa justificativa de Lenin para o racha e a criação de um Partido Bolchevique em separado. Ele procurou apresentar o caso bolchevique da forma mais favorável possível diante da opinião socialdemocrata da Europa Ocidental. Assim, o relatório provavelmente não expressa completamente as visões de Lenin sobre as relações bolchevique-menchevique.

O relatório apresenta dois argumentos básicos, um político e o outro empírico. O argumento político básico de Lenin é que a maioria dos Mencheviques, ao rejeitar a organização clandestina como o partido, se colocava qualitativamente à direita dos oportunistas (por exemplo, Bernstein) nas socialdemocracias da Europa Ocidental:

“Nós vemos o quão enganada é a opinião de que nossas diferenças com os liquidacionistas não são mais profundas e de que são menos importantes que aquelas entre os assim chamados radicais e os moderados na Europa Ocidental. Não há sequer um único – literalmente nenhum – partido europeu que tenha estado na ocasião de ter de adotar uma decisão geral contra pessoas que desejavam dissolver o partido e substituí-lo por um outro!
“Em nenhum lugar da Europa Ocidental houve alguma vez, ou poderia ter havido, uma discussão sobre se é permissível carregar o título de membro do partido e ao mesmo tempo reivindicar a dissolução de tal partido, argumentar que o partido é inútil e desnecessário, e que outro partido o substituísse. Em lugar nenhum lugar da Europa Ocidental se coloca a questão sobre a preocupação com a própria existência do partido como entre nós….
“Isso não é um desacordo sobre uma questão organizativa, de como o partido deveria ser construído, mas um desacordo que diz respeito à própria existência do partido. Aqui, conciliação, concordância e compromisso estão completamente fora de questão.” [ênfase no original] – “Relatório do CC do POSDR para a delegação da Conferência de Bruxelas” (junho de 1914)

Essa visão do liquidacionismo menchevique é superficial, focando na forma específica, mais do que no conteúdo político, do oportunismo socialdemocrata. A crença de Lenin de que os mencheviques russos estavam à direita de Bernstein, Jaures, etc. acabou se mostrando falsa. A guerra gerou o pequeno grupo Internacionalistas, seguidor de Martov, que serviu de contraponto aos Mencheviques se posicionando não apenas à esquerda dos socialpatriotas alemães Ebert/Noske, mas também à esquerda dos centristas do SPD Kautsky/Haase. A raiz causal do liquidacionismo organizativo dos Mencheviques em 1908-12 não era que Martov/Potresov estavam qualitativamente à direita de Bernstein e Noske, mas na verdade que Lenin, o líder formal do POSDR, estava à esquerda de Bebel/Kautsky.

A maior parte do relatório para a conferência de Bruxelas busca demonstrar empiricamente que “uma maioria de quatro quintos dos trabalhadores com consciência de classe da Rússia se mantiveram juntos a decisões e corpos criados pela conferência de janeiro [em Praga] de 1912”. É importante enfatizar que isso não era um argumento apenas para consumo público. Para Lenin, uma dos critérios decisivos de um partido realmente socialdemocrata era a extensão de seu reconhecimento operário. Em suas notas privadas para Inessa Armand, ele escreveu:

“Na Rússia, aproximadamente todo grupo ou 'tendência' … acusa o outro de não ser um grupo de trabalhadores. Nós consideramos essa acusação ou ainda argumento, essa referência à significância social de um grupo em particular, extremamente importante em princípio. Mas precisamente porque nós a consideramos extremamente importante, nós julgamos nosso dever não fazer declarações vazias sobre a significância social de outros grupos, mas pautar nossas declarações com fatos objetivos. E esses fatos objetivos provam absolutamente e de maneira irrefutável que o pravdismo [bolchevismo] sozinho é uma corrente dos trabalhadores na Rússia, onde liquidacionismo e socialismo-revolucionário são de fato correntes intelectualistas burguesas.” [ênfase no original]
Idem.

Como pode ser visto da citação acima, caso os Mencheviques tivessem nesse período adquirido uma significativa base operária, Lenin teria que ou adotar uma atitude mais conciliatória com relação a eles ou justificar o racha em princípios mais gerais.

A visão de Lenin dos Mencheviques como uma corrente intelectualista pequeno-burguesa externa ao movimento dos trabalhadores era impressionista. A onda de patriotismo e defensismo nacional que arrastou as massas russas nos primeiros anos da guerra beneficiou os Mencheviques oportunistas às custas dos leninistas, que eram derrotistas intransigentes. Quando a revolução russa ocorreu em fevereiro de 1917, os Mencheviques eram muito mais fortes em relação aos Bolcheviques do que eles tinham sido até 1914.

Entre 1912-14, as inumeráveis polêmicas de Lenin contra a unidade com os Mencheviques apresentaram uma série de diferentes argumentos. Alguns desses argumentos eram estreitos ou empíricos, como os do relatório para a conferência de Bruxelas. Entretanto, em outros escritos, Lenin antecipou o racha em princípios com os oportunistas no movimento operário, que define o partido comunista moderno. Assim, em uma polêmica em abril de 1914 contra Trotsky, intitulada “Unidade”, Lenin escreve:

“Não pode haver unidade, federativa ou qualquer outra, com políticos liberal-trabalhistas, com desviantes do movimento da classe operária, com aqueles que desafiam a vontade da maioria. Pode e deve haver unidade entre todos os marxistas consistentes, entre todos aqueles que permanecem junto a todos os ensinamentos do marxismo e os slogans sem seguidismo, independente de todos os liquidacionistas e separados deles.
“Unidade é uma grande coisa e uma grande palavra de ordem. Mas o que a causa dos trabalhadores precisa é da unidade dos marxistas, não da unidade entre marxistas e oponentes e desvirtuadores do marxismo.” [ênfase no original]

Entretanto, não foi até 4 de agosto de 1914, quando a bancada parlamentar da socialdemocracia alemã votou por créditos de guerra, que Lenin foi levado a entender o significado épico da passagem acima, para o seu racha com os Mencheviques russos. Só então Lenin buscou que os marxistas consistentes, ou seja revolucionários, rompessem com todos os políticos liberal-trabalhistas e todos os oponentes e desvirtuadores do marxismo. Ao fazer isso, ele criou no comunismo uma doutrina e um movimento histórico mundial revolucionário, o marxismo da época da agonia mortal do capitalismo.

Lenin

Em Direção à Internacional Comunista

O evento que transformou Lenin de um socialdemocrata revolucionário russo no líder fundador do movimento comunista mundial pode ser precisamente datado – 4 de agosto de 1914. Com o começo da Primeira Guerra Mundial, a bancada parlamentar do SPD alemão votou unanimemente em favor de créditos de guerra para o Reich. Tendo agora experimentado mais de 60 anos de traições socialdemocratas e stalinistas dos princípios socialistas, é difícil hoje para nós entender o impacto absolutamente chocante de 4 de agosto sobre os revolucionários da Segunda Internacional. Luxemburgo sofreu um colapso nervoso em reação à onda de nacional-chauvinismo que varreu o movimento socialdemocrata alemão. Lenin a princípio se recusou a acreditar no relatório sobre a votação no Reichstag do órgão do SPD, Vorwärts, descartando aquela edição como uma farsa feita pelo governo do Kaiser.

Para socialdemocratas revolucionários, 4 de agosto não apenas simplesmente destruiu suas ilusões num partido em particular e sua liderança, mas desafiou toda a sua visão política mundial. Para marxistas da geração de Lenin e Luxemburgo, o progresso da socialdemocracia, melhor representado na Alemanha, tinha parecido firme, irreversível e inexorável.

O Significado Histórico da Segunda Internacional

A era da (Segunda) Internacional Socialista (1889-1914) representou um crescimento extraordinariamente rápido no movimento operário europeu e das correntes marxistas dentro dele. Com a exceção dos sindicatos britânicos (que apoiavam os liberais burgueses), as organizações que formavam a Primeira Internacional (1864-74) eram grupos de propaganda que contavam quando muito com alguns milhares. Em 1914, os partidos da Internacional Socialista eram partidos de massa com milhões de apoiadores por toda a Europa.

No período da Primeira Internacional, havia talvez mil marxistas na face da Terra, esmagadoramente concentrados na Alemanha. Significativamente, não havia marxistas franceses na Comuna de Paris de 1871, apenas o húngaro Leo Franckel. Em 1914, o marxismo era a mais importante tendência no movimento internacional dos trabalhadores, a doutrina oficial dos partidos proletários de massa na Europa central e do leste. Pode-se entender portanto que Kautsky e os socialdemocratas poderiam considerar o marxismo como a expressão política natural e inevitável do movimento operário moderno.

A Grã-bretanha, é verdade, tinha um movimento operário de massa que era politicamente liberal e abertamente colaboracionista de classe. Entretanto, os próprios Marx e Engels tinham explicado o atraso do movimento operário britânico como um produto de circunstâncias históricas particulares (por exemplo, a dominação britânica na economia mundial, o antagonismo nacional inglês-irlandês, o Império). Além do mais, marxistas na Segunda Internacional, incluindo Lenin, consideravam a fundação do Partido Trabalhista em 1905 como um passo progressivo significativo em direção a um partido proletário socialista de massa na Grã-bretanha. Assim, o atraso político relativo do movimento dos trabalhadores britânicos não desafiava fundamentalmente a visão de mundo socialdemocrata ortodoxa (ou seja, kautskiana).

É fato consumado que o movimento marxista pré-1914 era familiar com renegados e revisionistas – os seguidores de Bernstein na Alemanha, Struve e os “marxistas legais” na Rússia. Lenin teria adicionado Plekhanov e os Mencheviques a essa lista. Mas essas regressões em direção ao reformismo liberal pareciam afetar apenas os elementos intelectuais no movimento socialdemocrata. O SPD, como um todo, parecia solidamente marxista em suas políticas, enquanto o marxismo era vitorioso contra o radicalismo socialista da velha escola (por exemplo, Jaures) em outras seções da Internacional (por exemplo, francesa, italiana).

4 de Agosto foi a primeira grande contra-revolução interna no movimento operário, e ainda mais destrutiva por que ela não era esperada. O triunfo do chauvinismo e colaboracionismo de classe nos partidos principais da Internacional Socialista despedaçou o otimismo trivial, passivo, do marxismo kautskiano. Depois da grande traição do SPD, indo para o lado de sua “própria” burguesia, os marxistas revolucionários não poderiam mais considerar o oportunismo no movimento dos trabalhadores como um fenômeno episódico ou marginal ou como um produto de um atraso político num caso histórico particular (como na Grã-bretanha).

As lideranças estabelecidas da maioria dos partidos socialistas de massa dificilmente poderiam ser descartados como intelectuais democratas pequeno-burgueses instáveis, como parceiros de viagem da socialdemocracia. Foi assim que Kautsky caracterizou os revisionistas bernisteinianos e como Lenin tinha descartado os Mencheviques. Mas os líderes chauvinistas do SPD em 1914 – Friedrich Ebert, Gustav Noske, Philipp Scheidemann – tinham construído sua trajetória ascendente no partido a partir de sua base, começando como jovens. Todos os três tinham sido trabalhadores: Ebert tinha sido um fabricador de selas, Noske um açougueiro e Scheidemann um tipógrafo. Ebert e Noske começaram suas carreiras no SPD como funcionários locais no sindicato, Scheidemann como um jornalista para um jornal local do partido. Os líderes oportunistas e chauvinistas eram portanto em muito feitos da carne e do sangue da socialdemocracia alemã.

Karl Kautsky Dietz Verlag

Karl Kautsky

Nem podiam as ações do SPD ser explicadas como um reflexo de um atraso político histórico da classe operária alemã. Ebert, Noske e Scheidemann tinham sido treinados como marxistas pelos seguidores pessoais de Marx e Engels. Eles tinham votado vezes e mais vezes por resoluções socialistas revolucionárias. Ao apoiar a guerra, os líderes do SPD sabiam que estavam violando os princípios socialistas de longa data do seu partido.

Até o momento do fatídico voto do Reichstag, o SPD adentrou em uma agitação anti-guerra de massa. Em 25 de julho de 1914 a executiva do partido lançou uma proclamação que concluía:

“Camaradas, nós apelamos a vocês para expressar nas reuniões de massa sem atraso a firme determinação do proletariado alemão de manter a paz…. As classes dominantes que em tempos de paz enganam vocês, desprezam vocês e os exploram, usariam vocês como comida para os canhões. Em todo lugar deve soar nos ouvidos daqueles no poder: 'Nós não teremos guerra! Abaixo à guerra! Vida longa à irmandade internacional dos povos!'”
– reproduzido por William English Walling, ed., Os Socialistas e a Guerra (1915)

Ao considerar a traição socialchauvinista da socialdemocracia alemã, Lenin foi levado a perceber que os Bolcheviques não eram simplesmente um equivalente russo do SPD com uma liderança revolucionária principista. A seleção, teste e treinamento dos membros no partido de Lenin eram fundamentalmente diferentes do partido de Bebel e Kautsky. E nessa diferença residia a razão de, em agosto de 1914, os representantes parlamentares do SPD terem apoiado o “seu” Kaiser, enquanto seus equivalentes no Partido Operário Social Democrata Russo (Bolcheviques) foram, ao contrário, trancafiados nas prisões do Czar.

Lenin Rompe com a socialdemocracia

A política básica de Lenin com relação à guerra e ao movimento socialista internacional foi desenvolvida dentro de poucas semanas após o início das hostilidades. Essa política tinha três elementos principais. Um, os socialistas devem lutar pela derrota, acima de tudo, de seus “próprios” Estados burgueses. Dois, a guerra demonstrava que o capitalismo na época imperialista ameaçava destruir a civilização. Os socialistas devem então trabalhar para transformar a guerra imperialista em guerra civil, ou seja, em revolução proletária. E três, a Segunda Internacional tinha sido destruída pelo socialchauvinismo. Uma nova internacional, revolucionária, deveria ser construída através de um completo racha com os oportunistas do movimento socialdemocrata.

Essas políticas, que permaneceram centrais para as atividades de Lenin até o momento da revolução de Outubro, eram claramente expressas em seus primeiros artigos sobre a guerra:

“É dever de cada socialista conduzir propaganda da luta de classes … trabalho dirigido com o objetivo de transformar a guerra de nações em guerra civil é a única atividade socialista na era de um conflito armado imperialista entre todas as nações…. Levantemos bem alto a bandeira da guerra civil! O imperialismo põe em perigo o destino da existência européia: essa guerra será seguida de outras a não ser que haja uma série de revoluções bem-sucedidas….
“A Segunda Internacional está morta, destruída pelo oportunismo. Abaixo o oportunismo, e longa vida à Terceira Internacional, livre não apenas dos “vira-casacas” …mas dos oportunistas também.
“A Segunda Internacional fez o seu trabalho útil de preparação na organização preliminar das massas proletárias durante o longo, 'pacífico' período da mais brutal escravidão capitalista e mais rápido progresso capitalista no último terço do século dezenove e no começo do século vinte. À Terceira Internacional cabe a tarefa de organizar as forças proletárias para uma sublevação revolucionária contra os governos capitalistas, pela guerra civil contra a burguesia de todos os países, pela captura do poder político, pelo triunfo do socialismo!”
– “A Posição e as Tarefas da Internacional Socialista” (Novembro de 1914)

Enquanto Lenin era otimista sobre ganhar a base de massas dos partidos socialdemocratas oficiais, ele entendia que ele estava reivindicando rachar o movimento dos trabalhadores em dois partidos antagônicos, um revolucionário, o outro reformista. Assim, a demanda de Lenin por uma Terceira Internacional encontrou muito mais oposição entre os socialdemocratas que estavam contra a guerra do que a sua denúncia veemente do socialchauvinismo. De fato, a maioria das polêmicas de Lenin nesse período (1914-16) não estavam direcionadas aos descaradamente socialchauvinistas (Scheidemann, Vandervelde, Plekhanov), mas sim aos centristas que faziam apologia aos socialchauvinistas (Kautsky) ou se recusavam a romper com eles (Martov).

Assim, Lenin foi forçado a se confrontar e rejeitar explicitamente a posição socialdemocrata ortodoxa sobre a questão do partido, o “partido de toda a classe” kautskista:

“A crise criada pela grande guerra tirou todas as máscaras, arrastou embora todas as convenções, expôs um abscesso que há muito chegou à cabeça, e revelou o oportunismo em seu verdadeiro papel de aliado da burguesia. O corte organizativo completo de tais elementos dos partidos operários se tornou imperativo…. A velha teoria de que o oportunismo é um 'fardo legítimo' em um partido único que não conhece 'extremos' agora se tornou uma tremenda ilusão para os trabalhadores e um tremendo obstáculo para o movimento da classe operária. O oportunismo sem disfarce, que imediatamente repele as massas trabalhadoras, não é tão destrutivo e ameaçador como essa teoria do mal dourado…. Kautsky, o mais célebre representante dessa teoria, e também a autoridade chefe na Segunda Internacional, se mostrou um hipócrita consumado e um velho mestre na arte de prostituir o marxismo.”
– “O Colapso da Segunda Internacional” (maio-junho de 1915)

Ao considerar o crescimento do oportunismo nos partidos socialdemocratas da Europa Ocidental, Lenin naturalmente revisou a história do movimento russo e do bolchevismo. Ele se deu conta de que a organização bolchevique não havia, de fato, sido construída de acordo com a fórmula kautskista. Ela havia se separado organizativamente completamente e de maneira formal dos oportunistas russos, os Mencheviques, dois anos e meio antes do começo da guerra e na prática desde 1912. Lenin agora tomava o Partido Bolchevique como um modelo para uma nova e revolucionária Internacional:

“O Partido Operário Social Democrata Russo há muito saiu da companhia dos seus oportunistas. Além do mais, os oportunistas russos agora se tornaram chauvinistas. Isso apenas fortifica-nos em nossa opinião de que um racha com eles é essencial para os interesses do socialismo…. Nós estamos firmemente convencidos de que, no presente estado das coisas, um racha com os oportunistas e chauvinistas é o dever primário dos revolucionários, assim como um racha com os sindicatos amarelos, anti-semitas, os sindicatos de trabalhadores liberais, foi essencial em ajudar a ganhar velocidade o crescimento de consciência dos trabalhadores atrasados e os lançou nas fileiras do partido socialdemocrata.
“Em nossa opinião, a Terceira Internacional deveria ser construída sobre esse tipo de base revolucionária. Para nosso partido, a questão da conveniência de um rompimento com os socialchauvinistas não existe, ela foi respondida por uma finalidade. A única questão que existe para o nosso partido é se é possível alcançar isso numa escala internacional num futuro imediato.”
– V.I. Lenin e G. Zinoviev, Socialismo e Guerra (julho-agosto de 1915)

Nós mantivemos ao longo dessa série que o leninismo, como uma extensão qualitativa do marxismo, surgiu em 1914-17, quando Lenin respondeu de uma maneira revolucionária à guerra imperialista e ao colapso da Segunda Internacional em hostis partidos socialchauvinistas. Essa visão foi contestada, por um lado pelos stalinistas que projetaram o culto da clarividência infalível do líder revolucionário desde o início da carreira política de Lenin e, por outro, pelos inúmeros centristas e reformistas de esquerda que querem erradicar ou distorcer a linha que separa o leninismo da socialdemocracia ortodoxa pré-1914 (kautskismo).

Entre os bolcheviques, entretanto, era amplamente reconhecido que o leninismo se originou em 1914 a não antes. Num artigo comemorativo seguido à morte de Lenin, Evgenyi Preobrazhensky, um dos principais intelectuais bolcheviques, escreveu:

“No bolchevismo, ou leninismo, nós devemos fazer uma distinção severa entre dois períodos – o período imediatamente antes da guerra mundial e o período aberto pela guerra mundial. Antes da guerra mundial, o camarada Lenin, apesar de realizar um marxismo revolucionário real, genuíno e sem distorções, não considerava ainda os socialdemocratas como agentes do capital nas fileiras do proletariado. Durante esse período, você encontrará mais de um artigo feito pelo camarada Lenin em que ele defende a socialdemocracia alemã em face das acusações e censuras que ela havia recebido, por exemplo, do campo dos populistas, sindicalistas, etc. de oportunismo contra-revolucionário, de traição do espírito revolucionário do marxismo….
“Se, para nosso infortúnio, o camarada Lenin tivesse morrido antes da guerra mundial, nunca teria entrado na cabeça de ninguém falar de leninismo, como alguma forma de versão especial de marxismo, como aconteceria posteriormente. Lenin era o mais consistente marxista revolucionário…. Mas não havia nada específico em nosso bolchevismo no reino da teoria … para distinguí-lo de alguma forma do tradicional, ainda que verdadeiramente revolucionário, marxismo….
“Se o camarada Lenin não tivesse vivido para ver esse período [pós-1914], ele teria entrado para a história como o mais iminente líder da ala esquerda da socialdemocracia russa…. Apenas o ano de 1914 o transformou num líder internacional. Ele foi o primeiro a colocar a questão básica: o que, num sentido amplo, essa guerra significa? Ele respondeu: essa guerra significa o começo da destruição do capitalismo e assim as táticas do movimento dos trabalhadores devem se direcionar a tornar a guerra imperialista uma guerra civil.”
– “Marxismo e Leninismo”, Molodoya Gvardiya, 1924 [nossa tradução]

O Que Significa o Socialchauvinismo?

Dentro de poucas semanas após o início da guerra, Lenin determinou o racha com os socialchauvinistas e que se trabalhasse por uma nova, revolucionária, Internacional. Mas ele não apresentou imediatamente uma explicação teórica (ou seja, histórica e sociológica) de porquê e como os partidos de massa do proletariado da Europa Ocidental tinham sucumbido ao oportunismo.

Aqui pode-se contrastar Marx e Lenin como políticos revolucionários. Marx em geral chegava a generalizações teóricas bem antes das conclusões programáticas, táticas e organizativas imediatas que fluíam das suas premissas sócio-históricas. Assim, no fim de 1848, após nove meses de revolução, Marx concluiu que a burguesia alemã era incapaz de derrubar o absolutismo. Entretanto, foi apenas um ano depois, no exílio, que Marx desenvolveu uma nova estratégia correspondendo à sua visão modificada da sociedade alemã. Em contraste, a confiança revolucionária de Lenin o levou a romper com o oportunismo e políticas falsas bem antes que ele unisse a isso generalizações teóricas correspondentes.

1914-16 foi um período em que a análise teórica de Lenin veio por trás de suas conclusões políticas e ações. Os escritos anteriores de Lenin sobre guerra e a Internacional identificavam o oportunismo socialdemocrata apenas como uma corrente político-ideológica. A única tentativa de relacionar o crescimento do oportunismo com condições históricas objetivas era a de que os partidos socialistas da Europa Ocidental haviam funcionado sob um longo período de legalidade burguesa.

A ausência de uma explicação sociológica e histórica para o oportunismo socialdemocrata era uma séria fraqueza na campanha de Lenin por uma Terceira Internacional. Era preciso demonstrar que 4 de agosto não era um episódio oportunista ou uma política errada reversível, para assim justificar plenamente rachar a socialdemocracia internacional. A luta de Lenin contra os centristas – Kautsky/Haase/Ledebour na Alemanha, Martov/Axelrod na Rússia, a liderança do Partido Socialista Italiano – focava no significado histórico do defensismo nacional na guerra mundial e na profundidade do oportunismo no movimento socialdemocrata. Os centristas mantinham que “defesa da terra natal” era um erro oportunista monumental, mas nada além. A política do defensismo nacional poderia ser revertida, a Segunda Internacional reformada (literalmente assim como figurativamente). Alguns dos extremos chauvinistas provavelmente teriam que ir embora, mas basicamente a “boa e velha Internacional” poderia ser restaurada àquilo que era em julho de 1914. Lenin considerava a Internacional pré-1914 como adoecida com o oportunismo; com a guerra, a doença piorou para o socialchauvinismo e se tornou fatal. Para os centristas, a Internacional pré-guerra era basicamente um corpo saudável. Ela estava agora passando pela doença do socialchauvinismo. A tarefa dos socialistas era curar a doença e salvar o paciente.

O principal porta-voz para a anistiar os socialchauvinistas e minimizar o problema do oportunismo era, é claro, Kautsky. Na Neue Zeit (15 de fevereiro de 1915) ele defendeu uma atitude de tolerância camarada para aqueles que “erraram” em defender o imperialismo alemão:

“É verdade que eu vi desde 4 de agosto que um número de membros do partido estavam continuamente evoluindo mais e mais na direção do imperialismo, mas eu acreditei que essas eram apenas exceções e tomei um ponto de vista otimista. Eu fiz isso para dar confiança aos camaradas e trabalhar contra o pessimismo. E isso foi igualmente importante para clamar os camaradas à tolerância, seguindo o exemplo de [Wilhelm] Liebknecht em 1870.”
– William English Walling, ed., Os Socialistas e a Guerra (1915)

A suavidade centrista com relação à Segunda Internacional também se expressou dentro do Partido Bolchevique bem cedo na guerra. O cabeça do grupo bolchevique na Suíça, V.A. Karpinsky, objetou à posição de Lenin que a Segunda Internacional havia entrado em colapso e que uma Internacional nova, revolucionária, deveria ser construída. Em uma carta (27 de setembro de 1914) para Lenin, ele escreveu:

“Nós acreditamos que seria um exagero definir tudo o que aconteceu com a Internacional como um 'colapso político-ideológico'. Nem por volume ou conteúdo essa definição corresponderia aos acontecimentos reais. A Internacional … sofreu um colapso político-ideológico, como queira, mas em uma questão apenas, a questão militar. Considerando o restante, não há razão para crer que a posição político-ideológica da Internacional foi abalada ou, ainda mias, que ela foi completamente destruída. Isso significaria que após perder apenas um reduto, nós estaremos desnecessariamente rendendo todos os fortes.”
– Olga Hess Gankin e H.H. Fisher, Os Bolcheviques e a Guerra Mundial (1940)

Para sobrepor tais atitudes centristas, Lenin tinha que demonstrar que 4 de agosto era o ápice de tendências oportunistas profundamente enraizadas nas natureza histórica da socialdemocracia européia.

Imperialismo, Socialchauvinismo e a Burocracia Operária

A análise de Lenin sobre a base social do oportunismo na Segunda Internacional foi primeiramente apresentada numa resolução (“Oportunismo e o Colapso da Segunda Internacional”) para uma conferência bolchevique em Berna, na Suíça em março de 1915:

“Certa camada da classe trabalhadora (a burocracia do movimento operário e a aristocracia operária, que fica com uma fração dos lucros da exploração das colônias e da posição privilegiada de suas 'terras natais' no mercado mundial), assim como simpatizantes pequeno-burgueses dentro dos partidos socialistas, proveram o suporte principal dessas tendências [oportunistas], e canais de influência burguesa sobre o proletariado.”

Essa análise simples não foi desenvolvida em nenhuma profundidade teórica ou empírica até o ano seguinte, principalmente no livro de Lenin, Imperialismo: a Fase Superior do Capitalismo (escrito no começo de 1916), e seu artigo, “Imperialismo e o Racha do Socialismo” (outubro de 1916), e no livro de Zinoviev, A Guerra e a Crise do Socialismo (agosto de 1916).

Dado o culto stalinista de Lenin e as interpretações individualistas da historiografia burguesa, não é amplamente reconhecido que Lenin trabalhou como parte de um coletivo. Durante os anos da guerra, ele teve literalmente uma divisão de trabalho com Zinoviev no qual o último se concentrou no movimento alemão. Lendo apenas os escritos de Lenin no período, consegue-se uma figura incompleta da posição bolchevique sobre a guerra imperialista e o movimento socialista internacional. Foi por isso que em 1916 os escritos de guerra de ambos Lenin e Zinoviev foram reunidos num único volume publicado em alemão, intitulado Contra a Corrente. A principal análise leninista do oportunismo na socialdemocracia alemã é o A Guerra e a Crise do Socialismo de Zinoviev, que contém uma longa seção intitulada “As raízes sociais do Oportunismo”. Essa seção chave do importante trabalho de Zinoviev foi reproduzida em inglês pela primeira vez na revista americana da corrente de Max Shachtman, New International (março-junho de 1942).

Grigory Zinoviev Radio Times Hulton

Grigory Zinoviev

Marxistas há muito haviam reconhecido a existência de uma burocracia operária pró-burguesa, pró-imperialista na Grã-Bretanha. Engels havia condenado bastante os líderes aburguesados dos sindicatos britânicos, relacionando esse fenômeno à dominação econômica mundial do Império Britânico. Entretanto, marxistas na Segunda Internacional consideravam o movimento operário colaboracionista de classe britânico como uma anomalia histórica, um estágio que a socialdemocracia européia havia rapidamente saltado. Ao começar sua seção sobre a burocracia operária na Alemanha, Zinoviev atesta que os marxistas haviam considerado a socialdemocracia como imune a essa casta social corrupta:

“Quando nós falávamos de burocracia operária antes da guerra, se entendia por isso quase exclusivamente os sindicatos britânicos. Nós tínhamos em mente o trabalho fundamental dos Webbs, o espírito de casta, o papel reacionário da burocracia no velho sindicalismo inglês, e nós dizíamos para nós mesmos: como temos sorte de não termos sido criados por essa imagem, como temos sorte de que este pote de mágoa tenha sido evitado no movimento operário do nosso continente.
“Mas nós estivemos bebendo por um longo tempo desse pote. No movimento operário da Alemanha – um movimento que servia como um modelo para socialistas de todos os países antes da guerra – surgiu uma casta de burocratas tão numerosa e tão reacionária quanto.” [nossa ênfase]

O triunfo do socialchauvinismo na Segunda Internacional fez Lenin reconsiderar o significado histórico da liderança operária pró-imperialista britânica. Ele chegou à conclusão de que o sindicalismo colaboracionista de classe da Inglaterra vitoriana antecipou tendências que viriam a tona quando outros países, acima de todos a Alemanha, disputassem economicamente com a Grã-bretanha e se tornassem poderes imperialistas competidores.

O crescimento industrial muito rápido da Alemanha, seguindo sua guerra vitoriosa em 1870, simultaneamente criou um poderoso movimento operário socialdemocrata e transformou o país em um agressivo poder mundial imperialista. Os objetivos expansionistas da Alemanha só poderiam ser realizados através de uma grande guerra. E a Alemanha não poderia ganhar uma grande guerra se enfrentasse a oposição ativa de seus poderosos movimentos proletários. Assim, as necessidades objetivas do imperialismo alemão requiriram a cooperação da liderança socialdemocrata. A derrota da revolução democrático-burguesa alemã em 1848 e a estrutura política de classe semi-autocrática resultante, tornaram a reaproximação entre os círculos dominantes e a burocracia operária mais difícil, menos evolucional que na Grã-bretanha. Daí o efeito chocante de 4 de agosto.

Mas Lenin reconhecia que o processo histórico de fundo que levou ao voto por crédito de guerra do SPD em 1914 e às nomeações de ministros de gabinete pelo Partido Operário Inglês era semelhante. Em Imperialismo ele escreveu:

“Deve ser observada na Grã-Bretanha a tendência do imperialismo de dividir os trabalhadores, de fortalecer o oportunismo entre eles e causar um decaimento temporário em oportunismo dos interesses gerais e vitais do movimento da classe trabalhadora….
“O oportunismo não pode ser completamente triunfante no movimento da classe trabalhadora de um país por décadas como foi triunfante na Grã-bretanha na segunda metade do século dezenove; mas em um número de países, ele cresceu maduro, ainda mais maduro e podre, e se tornou completamente mergulhado na política burguesa sob a forma de 'socialchauvinismo'.” [nossa ênfase]

O Imperialismo de Lenin lida com aquelas mudanças no sistema capitalista mundial que fortaleceram forças oportunistas no movimento internacional dos trabalhadores. É o trabalho de Zinoviev de 1916 que analisa concretamente as forças do oportunismo na socialdemocracia alemã.

Zinoviev mostrou que o enorme tesouro do SPD sustentava um vasto número de funcionários que levavam confortáveis vidas pequeno-burguesas bem longe dos trabalhadores que eles supostamente representavam. Em adição a um padrão de vida relativamente alto, a oficialidade socialdemocrata tinha começado a desfrutar de um status social privilegiado. A elite dominante alemã começava a tratar o SPD e líderes sindicais com respeito, diferenciando entre os “moderados” e os radicais, como Karl Liebknecht. O efeito corruptor sobre um ex-tipógrafo e um ex-fabricante de selas, ao serem tratados como personagens importantes pela aristocracia Junker (fidalga) era considerável. Referindo-se às memórias de Scheidemann no período da guerra, Carl Schorske em seu excelente Socialdemocracia Alemã 1905-1917 (1955) comenta: “Nenhum leitor de Scheidemann pôde perder o prazer genuíno que ele sentiu ao ser convidado a discutir problemas no mesmo patamar que os ministros de Estado.” A socialdemocracia alemã tinha se tornado uma instituição pela qual jovens trabalhadores capazes e ambiciosos poderiam atingir o topo de uma sociedade de classe – e casta – altamente estratificada.

O grande trabalho de Zinoviev de 1916 corrige a ênfase em revisionismo ideológico como a causa do oportunismo que se encontra nos primeiros escritos de guerra de Lenin. De fato, a doutrina oficial e programa do SPD não refletiram sua crescente prática reformista. Muitos dos líderes socialdemocratas, esmagadoramente de origem trabalhadora, mantiveram um apego sentimental à causa socialista muito depois de terem cessado em acreditar nelas como práticas políticas. Apenas a guerra forçou o SPD a romper abertamente com um princípio socialista.

Zinoviev reconheceu a ideologia socialchauvinista como uma falsa consciência surgindo do verdadeiro papel da oficialidade do SPD na sociedade alemã wilhelminiana:

“Quando nós falamos da 'traição dos líderes' nós não dizemos com isso que foi uma conspiração profundamente armada, que foi uma venda conscientemente perpetrada dos interesses dos trabalhadores. Longe disso. Mas a consciência é condicionada pela existência, e não vice-versa. A essência social inteira da casta de burocratas do trabalho levou inevitavelmente, através do ritmo moldado pelo movimento no 'pacífico' período pré-guerra, ao completo aburguesamento da sua 'consciência'. A posição social inteira que essa casta numericamente forte escalou subindo nas costas da classe trabalhadora a tornou um grupo social que objetivamente deve ser considerado como uma agência da burguesia imperialista.” [ênfase no original]

Os anarco-sindicalistas aplaudiram o ataque marxista revolucionário contra a burocracia socialdemocrata e proclamou: nós avisamos. Assim, os Bolcheviques, ao atacarem a socialdemocracia oficial, distinguiram sua posição cautelosamente da dos anarco-sindicalistas. Zinoviev colocou que a existência de uma poderosa burocracia era, em certo sentido, um produto do desenvolvimento e da força do movimento operário de massa. A resposta anarco-sindicalista para o burocratismo apontava para a auto-liquidação do movimento dos trabalhadores como uma força organizada objetivamente capaz de destruir o capitalismo. Se a burocracia reformista suprimia o potencial revolucionário do movimento dos trabalhadores, os anarco-sindicalistas propunham desorganizar tal movimento até a impotência.

Zinoviev manteve que a burocracia não era idêntica a uma ampla organização partidária e a funcionários sindicais. Ao contrário, tais aparatos eram necessários para liderar a classe trabalhadora ao poder. A tarefa decisiva era a subordinação dos líderes e funcionários do movimento trabalhista aos interesses históricos do proletariado internacional:

“No tempo da crise sobre a guerra, a burocracia do trabalho atuou no papel de um fator reacionário. Isso está sem dúvida correto. Mas isso não significa que o movimento operário será capaz de se manter sem um grande aparato organizativo, sem um espectro inteiro de pessoas dedicadas especialmente ao serviço nas organizações proletárias. Nós não queremos voltar ao tempo em que o movimento dos trabalhadores era tão fraco que ele podia continuar sem seus próprios empregados e funcionários, mas ir ainda mais adiante para o tempo em que o movimento operário seja algo diferente, em que o forte movimento do proletariado irá subordinar a camada de funcionários a ele próprio, em que a rotina será destruída, a corrosão burocrática chicoteada; um tempo que trará novos homens à superfície, insuflar neles coragem para lutar, completá-los com um novo espírito.”

Não existe uma solução organizativa mecânica para o burocratismo no movimento dos trabalhadores ou mesmo em seu partido de vanguarda. Combater o burocratismo e o reformismo envolve uma luta política contínua contra a influências e pressões de todos os lados que a sociedade burguesa busca lavar ao movimento dos trabalhadores, à suas várias camadas e à sua vanguarda.

A Posição Leninista Sobre a Aristocracia Operária

Os marxistas da Segunda Internacional estavam plenamente cientes que a classe operária como um todo não apoiava o socialismo. Muitos trabalhadores aderiam à ideologias burguesas (por exemplo, religião) e apoiavam partidos capitalistas. Socialdemocratas pré-1914 em geral associavam o atraso político com o atraso social. Em particular eles viam que trabalhadores a pouco tirados do campesinato e outros pequenos proprietários tendiam a reter a visão de mundo de sua antiga classe. Assim, Kautsky escreveu em seu A Estrada para o Poder, de 1909:

“Após um grande termo tirados da classe dos pequenos capitalistas e dos pequenos agricultores, muitos proletários carregam as conchas dessas classes sobre eles. Eles não sentem a si próprios como proletários, mas como se fossem donos de propriedade.”

Em outras palavras, a posição socialdemocrata clássica era a de que aqueles trabalhadores que tinham um baixo nível cultural, eram pouco dotados de compreensão, desorganizados, vinham de um passado rural, etc., seriam os mais submissos com relação à autoridade burguesa. No contexto da Alemanha e da França do século XIX, essa generalização político-sociológica era válida.

Entretanto, com o desenvolvimento de um forte movimento sindical, o conservadorismo social e político apareceu no topo da classe trabalhadora e não apenas na base. Trabalhadores dotados de grande poder de entendimento, em sindicatos fortes de ofício, se isolaram a um certo nível do mercado de trabalho e do desemprego cíclico e tenderam a expressar uma visão de mundo estreita e corporativa.

O fenômeno da casta aristocrática operária, como aquele da burocracia do trabalho, se manifestou primeiro na Inglaterra vitoriana. O espírito estreito e corporativo dos sindicatos oficiais britânicos era bem conhecido. Além do mais, a camada superior da classe trabalhadora britânica era quase exclusivamente inglesa e escocesa, enquanto os irlandeses eram uma parte significativa da força de trabalho desqualificada.

A composição da socialdemocracia alemã pré-guerra consistia largamente dos trabalhadores mais bem qualificados. Zinoviev viu nessa composição sociológica uma importante fonte de reformismo:

“… a massa predominante dos membros da organização socialdemocrata de Berlim é composta de trabalhadores treinados, qualificados. Em outras palavras, a massa predominante dos membros da organização socialdemocrata consiste da camada mais bem paga do mundo do trabalho – daquela camada na qual surge a grande seção da aristocracia operária. [ênfase no original]
A Guerra e a Crise do Socialismo

Zinoviev não faz tentativa alguma de demonstrar empiricamente que a aristocracia operária provia a base para a ala direita do SPD; ele meramente afirma isso. Ele pode então ser criticado por transportar mecanicamente a sociologia política da Grã-bretanha vitoriana para o terreno muito diferente da Alemanha wilhelminiana. O sindicalismo de ofício nunca prestou um papel tão importante na Alemanha quanto na Grã-bretanha. Por outro lado, o atraso rural era amplamente presente na vida política da Alemanha imediatamente antes da guerra. A base sólida da ala de direita do SPD eram as organizações provinciais do partido. Burocratas da ala direita tentavam conter os radicais, que eram sempre concentrados nas grandes cidades, desestabilizando os distritos eleitorais do partido em favor das pequenas cidades. O filho de um camponês, trabalhando como um operário sem qualificação tendia mais a apoiar a direita do SPD, representada por Bernstein e Eduard David, do que um mestre mecânico de Berlim.

Entretanto, se Zinoviev foi muito mecanicista ao impor um modelo britânico da base social do oportunismo no SPD, a posição leninista básica sobre a estratificação da classe trabalhadora na época imperialista permanece válida. Em países capitalistas avançados, com um movimento operário grande e bem estabelecido, a camada mais alta da classe trabalhadora tenderá frequentemente em direção ao conservadorismo político e social em relação à massa do proletariado. Além do mais, com certos limites econômicos, a burguesia e a burocracia do trabalho podem esticar a diferença entre a aristocracia operária e a classe como um todo.

Zinoviev está certamente correto quando ele escreve:

“Para fomentar divisões entre as várias camadas da classe trabalhadora, pra promover competição entre eles, para segregar a camada superior do resto do proletariado corrompendo-a e tornando-a uma agência da 'respeitabilidade' – ou seja, inteiramente dentro dos interesses da burguesia…. Eles [os socialchauvinistas] dividem a classe trabalhadora dentro de cada país e dessa forma intensificam e agravam a separação entre as classes trabalhadoras de vários países.”
– Zinoviev (Op. cit.)

A camada mais alta da classe trabalhadora não é sempre e em todo lugar politicamente à direita da massa do proletariado. Algumas vezes a maior segurança econômica dos trabalhadores mais bem qualificados produz uma situação onde eles mantém uma atitude política mais radical do que a massa dos trabalhadores organizados, que estão mais preocupados com as suas necessidades materiais do dia-a-dia. Assim, na Alemanha da República de Weimar nos anos 1920, o apoio comunista entre trabalhadores bem treinados era relativamente maior que entre a força de trabalho simples das fábricas, que buscava os socialdemocratas por reformas imediatas. Franz Borkenau escreveu sobre a composição do Partido Comunista Alemão em 1927:

“… trabalhadores qualificados e pessoas que foram trabalhadores qualificados fazem dois quintos dos membros do partido; se suas companheiras se somassem a essa conta, eles formariam provavelmente quase metade…. Se existe tal coisa como uma aristocracia operária, ela está bem aqui.”
Comunismo no Mundo (1939)

A posição de Lenin sobre a aristocracia operária foi uma importante correção da orientação positiva, tradicional socialdemocrata para esse setor, uma orientação que era em parte uma reação conservadora ao rápido crescimento da força de trabalho com pouca formação vinda de um campesinato politicamente conservador e socialmente atrasado. Enquanto trabalhadores de origem rural podem ser extremamente militantes, eles são muito instáveis e difíceis de organizar numa base estável. Por exemplo, os operários migrantes e grupos semelhantes (como os camisas-pardas, por exemplo) lançados na organização sindical American Industrial Workers of the World, dos Estados Unidos, antes da Primeira Guerra Mundial, demonstraram grande combatividade, mas também uma grande instabilidade organizativa.

Nenhum auto-professado marxista mantém hoje uma orientação tão positiva com relação às seções mais bem qualificadas, mais bem pagas da classe trabalhadora como fazia a socialdemocracia. Ao contrário, durante o período passado o “marxismo” da Nova Esquerda foi a um extremo oposto, desprezando todo o proletariado organizado nos países capitalistas avançados como “aristocracia operária” comprados pelos espólios do imperialismo. Assim como no tempo em que o ataque dos marxistas revolucionários era explorado pelos anarco-sindicalistas, em nosso tempo a análise crítica de Lenin sobre o papel da aristocracia operária é desvirtuado e explorado para servir ao radicalismo anti-proletário, pequeno burguês, particularmente o nacionalismo.

Um líder inspirador intelectual do terceiro mundismo da Nova Esquerda (mais ou menos associado com o maoísmo) foi Paul Sweezy, da Monthly Review. Sua distorção revisionista da análise de Lenin sobre a aristocracia operária é apresentada com angularidade especial num artigo do centenário da publicação do primeiro volume de O Capital, “Marx e o Proletariado” (Monthly Review, dezembro de 1967). Aqui, Sweezy revindica o Imperialismo de Lenin para propor que a principal força social da revolução passou para as massas rurais nos países atrasados:

Eduard Bernstein Bildarchiv Preußischer Kulturbesitz

Eduard Bernstein

“A maior contribuição dele [Lenin] foi seu pequeno livro Imperialismo: A Fase Superior do Capitalismo que, tendo sido publicado em 1917, tem exatamente metade da idade que o primeiro volume de O Capital. Lá ele argumenta que 'o capitalismo se tornou um sistema mundial de opressão colonial e da estrangulação financeira da esmagadora maioria dos povos do mundo por um punhado de 'países avançados''…. Ele também argumenta que os capitalistas dos países imperialistas podem e usam parte do seu 'saque' para subornar e trazer para o seu lado uma aristocracia operária. Tão longe quanto é levada em conta a lógica do argumento, ela pode ser estendida a uma maioria ou ainda a todos os trabalhadores dos países industrializados. De qualquer forma está claro que levando em conta o caráter global do sistema capitalista, nos são fornecidas fortes razões adicionais para acreditar que a tendência nesse estágio do desenvolvimento capitalista será gerar um proletariado cada vez menos do que mais revolucionário.” [nossa ênfase]

A Nova Esquerda está bastante errada em simplesmente identificar a aristocracia operária com os setores mais bem pagos do proletariado. Em primeiro lugar, muitos dos trabalhadores relativamente bem pagos (por exemplo, motoristas ou caminhoneiros nos Estados Unidos) são membros dos sindicatos industriais de trabalhadores sem qualificação ou com pouca qualificação, e ganham seus níveis de salário através de luta militante contra os patrões e não com suborno ou cargo de confiança imperialista. Nem podem todos os sindicatos oficiais serem contados entre a aristocracia operária. Os costureiros e os portuários, organizados em linhas oficiais, estão entre os trabalhadores sindicalizados menos bem pagos nos Estados Unidos.

Em Imperialismo e outros escritos relacionados, Lenin enfatiza de novo e de novo que a aristocracia operária representava uma minoria do proletariado. E isso não era uma estimativa empírica, mas uma proposição sociológica básica. Um grupo só pode ocupar uma posição social privilegiada em relação às massas trabalhadoras da sociedade da qual é parte. A noção da Nova Esquerda terceiro-mundista de que o proletariado nos centros imperialistas é uma aristocracia operária em relação às empobrecidas massas coloniais nega que a classe trabalhadora européia e norte-americana é centralmente definida pela exploração pelas mãos da “sua” burguesia. Isso é metodologicamente similar ao argumento dos apologistas do Apartheid na África do Sul de que os trabalhadores negros nesse país estão melhor do que aqueles no resto da África.

Entretanto, o revisionismo de Sweezy não se limita a estender a categoria de aristocracia operária à maioria dos trabalhadores nos países capitalistas avançados. Ele também distorce a atitude de Lenin com relação à aristocracia operária em si, que é uma categoria sociológica e não política. Para a camada mais alta da classe trabalhadora, a defesa dos seus pequenos privilégios em geral domina sua consciência e ação. É portanto um intermédio cultural para a falsa consciência que enxerga os interesses dos trabalhadores como ligados aos da “sua” burguesia (apoio à guerra imperialista, protecionismo, esquemas de “divisão dos lucros”, etc.). Mas a aristocracia operária também faz parte da classe trabalhadora, dividindo interesses comuns de classe com o resto do proletariado, e assim não pode ser considerada como inerentemente e terminalmente pró-imperialista. Sob condições capitalistas normais, a aristocracia operária poderá muito bem buscar vantagens econômicas de curto prazo sob os custos da classe como um todo. Entretanto, sob o impacto de uma profunda depressão econômica, uma guerra devastadora, etc., os interesses de longo prazo dessa camada como um setor do proletariado tenderão a vir à tona.

Leninistas até mesmo buscam ganhar os setores super-explorados da pequeno-burguesia (por exemplo, professores, pequenos agricultores) para a causa do socialismo revolucionário. Portanto, eles não podem entregar pura e simplesmente um setor da classe trabalhadora, apesar de ser um setor relativamente privilegiado, aburguesado, ao campo da contra-revolução burguesa. Grupos da aristocracia operária podem terminar no lado errado da barricada numa situação revolucionária. Na revolução de outubro, os relativamente bem pagos trabalhadores das ferrovias proveram a base para as atividades contra-revolucionárias dos Mencheviques. Entretanto, os petroleiros do México, sendo um grupo proletário de elite num país atrasado, tem há muito estado entre os setores mais avançados no movimento operário desse país. Em um importante artigo escrito pouco depois de Imperialismo, Lenin explicitamente declara que a fração do proletariado que vai no final ficar do lado da burguesia só pode ser determinado através da luta política:

“Nem nós e nem ninguém pode calcular precisamente que porção do proletariado está seguindo e irá seguir os socialchauvinistas e oportunistas. Isso será revelado apenas pela luta, isso irá definitivamente ser decidido apenas pela revolução socialista.”
– “Imperialismo e o Racha do Socialismo” (outubro de 1916)

A atitude leninista com relação à aristocracia operária é significativamente diferente daquela com relação à sua liderança, a burocracia do trabalho. Na época imperialista, a era da decadência capitalista, reformismo bem sucedido é impossível. Assim, quaisquer que sejam seu passado e sua motivação original, a não ser que eles explicitamente adotem um curso revolucionário, os líderes do movimento operário são forçados por seu papel social a subordinar os interesses dos trabalhadores à burguesia. Como Lenin escreveu posteriormente sobre os “capangas operários da burguesia”:

“O imperialismo do tempo presente (século XX) deu a alguns poucos países avançados uma posição excepcionalmente privilegiada, a qual, em toda a parte da Segunda Internacional, produziu um certo tipo de líderes traidores, oportunistas e socialchauvinistas, que defendem os interesses da sua própria oficialidade, do seu próprio setor da aristocracia operária…. O proletariado revolucionário não pode ser vitorioso a não ser que esse mal seja combatido, a não ser que os líderes oportunistas, social-traidores, sejam expostos, desacreditados e expulsos.”
Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo (1920)

Em contraste, trabalhadores treinados, bem pagos, enquanto mais suscetíveis à ideologia burguesa conservadora, não são “agentes da burguesia no movimento operário” (Idem). Assim como o resto do proletariado, eles devem ser ganhos para longe dos seus falsos líderes traiçoeiros.



O Marxismo Clássico e o Partido Leninista de Vanguarda

Em 1916, Lenin havia desenvolvido ambas as bases programática e teórica para um racha com a socialdemocracia oficial e a criação de um partido de vanguarda internacional tendo como modelo os Bolcheviques. A verdadeira formação da Internacional Comunista em 1919 foi, é claro, decisivamente afetada pela revolução bolchevique e o estabelecimento do Estado Soviético. Entretanto, esta série analisa a evolução da posição de Lenin na questão organizativa se afastando da socialdemocracia revolucionária tradicional. E esse processo foi essencialmente completado antes da revolução russa. Nós assim concluímos com uma discussão sobre a relação do partido leninista de vanguarda com a experiência marxista anterior na questão organizativa.

No que diz respeito ao partido de vanguarda, a história do movimento marxista parece paradoxal. A primeira organização marxista, a Liga Comunista de 1847-52, era um grupo de propaganda de vanguarda que claramente se demarcava de todas as outras tendências no movimento socialista e no movimento operário (ou seja, o blanquismo, o “real” socialismo alemão, o cartismo britânico). Em contraste, a Associação Internacional dos Trabalhadores (Primeira Internacional), estabelecida uma geração depois, procurava ser um órgão inclusivo, abarcando todas as organizações da classe trabalhadora. Um pilar central da Primeira Internacional era o movimento sindical inglês, que apoiava politicamente os liberais burgueses. A (Segunda) Internacional Socialista, embora sua seção dominante fosse a socialdemocracia marxista alemã, buscava incluir todos os partidos socialistas operários. Em 1908, a Segunda Internacional admitiu até mesmo o recém-formado Partido Operário Britânico, que não se reivindicava socialista. Assim, a Internacional Comunista de 1919 era em certo sentido uma ressurreição da Liga Comunista de 1848 com uma base de massas.

Como se explica a ausência do princípio do partido de vanguarda no marxismo clássico do fim do século XIX?

Escritores stalinistas algumas vezes negam esse fato, distorcendo a história para fazer de Marx/Engels defensores dos princípios de organização leninistas. Por outro lado, seria idealismo anti-histórico criticar Marx e Engels por sua política organizativa e considerar que o equivalente da Internacional Comunista poderia e deveria ter sido estabelecido entre 1860-90.

A formação da Liga Comunista de 1847 se afirmou diante de uma revolução democrático-burguesa iminente. A tarefa de organizar o povo, incluindo o proletariado urbano-artesão, estava sendo realizada pelo amplo movimento democrático revolucionário. A tarefa da Liga Comunista era competir pela liderança de um movimento revolucionário existente contra os democratas burgueses (assim como os socialistas utópicos). A Liga Comunista definia então a si própria como a vanguarda socialista operária do movimento revolucionário democrático-burguês. Com o fim definitivo do período revolucionário de 1848 (assinalado pelo julgamento dos comunistas de Colônia em 1952), a estratégia de Marx e seu componente organizativo se tornaram inviáveis.

Entre as revoluções de 1848 e a revolução russa de 1905, as possibilidades de uma revolução democrático-burguesa bem sucedida tinham sido esgotadas enquanto as bases econômicas para uma revolução proletário-socialista ainda eram imaturas nos principais países da Europa Ocidental (a Grã-bretanha apresentava seus próprios problemas excepcionais nesse respeito. Entretanto, mesmo que a Grã-bretanha fosse muito mais avançada que a França ou a Alemanha nos anos de 1850, o número de servos domésticos ainda era maior que o de trabalhadores industriais). A tarefa dos socialistas era criar as precondições para uma revolução socialista através da organização do proletariado a partir de uma condição minúscula. Além do mais, nas décadas que se seguiram imediatamente à derrota de 1848, organizações estáveis de massa da classe trabalhadora foram impedidas na Alemanha e na França por uma efetiva repressão do Estado.

Um partido de vanguarda de tipo leninista na Alemanha ou na França entre 1860-90 teria existido num vácuo político desrelacionado a qualquer movimento potencialmente revolucionário mais amplo. Assim, no período seguinte à dissolução da Primeira Internacional, Marx se opôs ao restabelecimento de um centro internacional como uma digressão da tarefa de construir um movimento dos trabalhadores realmente capaz de derrubar o capitalismo. Numa carta (22 de fevereiro de 1881) ao anarquista holandês Ferdinand Domela-Nieuwenhuis, ele escreveu:

“É minha convicção que a conjuntura crítica para uma nova Associação Internacional dos Trabalhadores ainda não chegou e por essa razão eu considero todos os congressos dos trabalhadores ou congressos socialistas, até onde eles não estejam relacionados diretamente às condições existentes nessa ou naquela nação, não como meramente inúteis, mas na verdade danosos. Eles sempre irão terminar de maneira inefetiva com intermináveis e repetidas discussões banais.”
– Marx/Engels, Correspondência Selecionada (1975)

Na Europa ocidental, a transição do movimento revolucionário democrático-burguês para partidos socialistas proletários de massa exigiu uma época inteira envolvendo décadas de atividade preparatória.

A situação que enfrentavam os marxistas na Rússia czarista era fundamentalmente diferente. Lá, uma revolução democrático-burguesa aparecia numa previsão de curto prazo. Existia um movimento revolucionário democrático-burguês na forma de populismo radical-socialista com amplo apoio da intelectualidade.

Em aspectos importantes, as condições diante do grupo Emancipação do Trabalho de Plekhanov nos anos de 1880 eram paralelas àquelas da Liga Comunista antes da revolução de 1848. Plekhanov projetava um partido proletário (iniciado pela intelectualidade socialista) que iria agir como vanguarda na revolução democrático-burguesa, enquanto se demarcando de forma clara de todas as correntes pequeno-burguesas radicais. Essa concepção vanguardista é claramente atestada no programa do grupo Emancipação do Trabalho de 1883:

“Uma das consequências mais danosas do estado de atraso da produção era e ainda é o subdesenvolvimento da classe média, que, em nosso país, é incapaz de tomar a iniciativa na luta contra o absolutismo.
“É por isso que a nossa intelligentsia socialista foi obrigada a liderar o movimento de emancipação dos dias de hoje, o qual a tarefa direta deve ser estabelecer instituições políticas livres no nosso país, os socialistas por sua vez estando na obrigação de prover a classe trabalhadora com a possibilidade de desempenhar um papel ativo e frutífero na futura vida política da Rússia.” [ênfase no original]
– G. Plekhanov, Trabalhos Filosóficos Selecionados, Volume 1 (1961)

Na Alemanha bismarckiana e wilhelminiana, todos os partidos burgueses eram hostis à socialdemocracia, que representava ao mesmo tempo a totalidade do movimento dos trabalhadores e de longe a mais significativa força por mudança política democrática. O Partido Católico de Centro, os Nacional-liberais, e os Progressistas eram vistos apenas episodicamente como um desafio para o governo semi-autocrático. Em contraste, os socialdemocratas russos tinham que competir por militantes e por influência popular, inclusive entre o proletariado industrial, com os populistas radicais e às vezes até mesmo com os liberais. Além do mais, uma vez que a Rússia era um Estado multinacional, os socialdemocratas também tinham que competir com os partidos nacionalistas de esquerda como o Partido Radical Democrático da Ucrânia e o Partido Socialista Polonês, e partidos similares na região báltica e no Cáucaso.

Os princípios organizativos da socialdemocracia de Plekhanov tinham assim um duplo caráter. No que diz respeito ao proletariado, os primeiros socialdemocratas russos buscavam se tornar “o partido de toda a classe”, imitando o SPD. Mas eles também buscavam se tornar a vanguarda de todas as diversas forças anti-czaristas no Império Russo.

Da socialdemocracia de Plekhanov, Lenin herdou as concepções vanguardistas ausentes nos partidos socialistas da Europa Ocidental. O significado da luta contra o economicismo, que foi iniciada por Plekhanov e não Lenin, era preservar o papel de vanguarda da socialdemocracia em relação às amplas, heterogêneas forças democrático-burguesas. Por Lenin ter rachado a socialdemocracia russa (1903) antes de ter atingido uma base de massas, ele não reconheceu inteiramente o significado do que tinha feito. Ele considerou o racha com os Mencheviques como uma legítima continuação da luta para separar o socialismo proletário da democracia pequeno-burguesa. Na realidade, ele tinha separado os revolucionários socialistas dos reformistas, ambos buscando uma base na classe trabalhadora.

O significado mundial histórico do bolchevismo pré-1914 foi que ele antecipou os princípios organizativos requeridos para a vitória na época imperialista do capitalismo e na revolução proletária. Como a época da degeneração capitalista se abriu com a Primeira Guerra Mundial, o principal obstáculo para a revolução proletária não era mais o subdesenvolvimento da sociedade burguesa e do movimento dos trabalhadores. Era agora a reacionária burocracia do trabalho, descansando sobre um poderoso movimento operário, que preservava um sistema social obsoleto. A primeira tarefa dos revolucionários socialistas era, dessa forma, derrotar e substituir os reformistas como a liderança do movimento de massa dos trabalhadores, a precondição para liderar tal movimento para a vitória sobre o capitalismo e lançar as bases para uma sociedade socialista. Essa tarefa tem um caráter duplo. O estabelecimento de um partido revolucionário de vanguarda divide o movimento da classe trabalhadora politicamente. Entretanto, um partido de vanguarda busca liderar as massas do proletariado unidas através de organizações econômicas na luta de classes, os sindicatos. Numa situação revolucionária, um partido de vanguarda busca liderar uma classe trabalhadora unida para tomar o poder através de sovietes, a base organizativa de um governo direto dos trabalhadores.

Bibliografia

Ao longo do texto foram traduzidos do original em inglês, russo e alemão, tanto os títulos das fontes quanto os trechos citados como forma de facilitar a compreensão para o leitor de língua portuguesa. A seguir, estão as fontes originais em inglês, russo e alemão.

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Slaughter, Cliff, Lenin on Dialetics (Nova Iorque, 1971)

Trotsky, Leon, In Defense of Marxism (Nova Iorque, 1973); My Life (Nova Iorque, 1970); Stalin: An Appraisal of the Man and His Influences (Nova Iorque, 1970); ''Unsere politischen Aufgaben,'' Schriften zur revolutionaren Organisation (Hamburgo, 1970)

Walling, William English, ed., The Socialists and the War (Nova Iorque, 1915)

Wolfe, Bertrarn, Three Who Made a Revolution (Nova Iorque, 1948)

Zinoviev, Gregori, History of the Bolshevik Party: From the Beginnings to February 1917 (London, 1973); Der Krieg und die Krise des Sozialismus (Vienna, 1924) [transcrito na New International (Nova Iorque) 1939-1942]

Lenin

Em Defesa do Centralismo Democrático

Um Discurso de James Robertson

O discurso abaixo foi feito numa conferência do Grupo Spartacus da Alemanha Ocidental (Bolchevique-Leninista) em fevereiro de 1973.

O Spartacus/BL tinha se originado de um racha em dezembro de 1972 dos Internationale Kommunisten Deutschlands (IKD). Posteriormente ele sofreu debilidades e se fundiu novamente com o IKD no começo de 1974, para formar a Spartacusbund. O núcleo original da seção alemã da Tendência Espartaquista Internacional foi constituído por várias forças oposicionistas de esquerda originadas na Spartacusbund.

O texto foi publicado na edição alemã da revista Spartacist, Número 1 (primavera de 1974), e (integralmente) em inglês no livro da Liga Espartaquista Lenin e o Partido de Vanguarda (1978, 1997). Para essa versão foi tomada a transcrição contemporânea do discurso gravado, com correções tipográficas.

Eu gostaria de saudar os camaradas da conferência do grupo Spartacus/BL. [Aplausos]. Esta é a terceira vez que tenho a oportunidade de vir à Europa: em Londres na conferência do Comitê Internacional de 1966, em Bruxelas, em novembro de 1970, na conferência do Secretariado Unificado. Em nenhuma dessas duas ocasiões eu fui espancado. [Risos]. Então desta vez eu venho a Essen.

Um camarada outro dia disse, em relação a um ponto considerando a Declaração de Princípios da Liga Espartaquista, que vocês não tem nada a aprender com a Liga Espartaquista. Nós acreditamos que nós temos muito a aprender com vocês. [Aplausos].

A razão pela qual nós fizemos um considerável esforço em nos conectarmos com o Spartacus/BL é o seguinte. Como disse Trotsky em 1929 e ainda é verdade hoje: a Alemanha é a chave para a Europa. Nos anos 60 houve uma considerável radicalização na Europa e pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial emergiu uma camada da juventude originada do movimento estudantil que professa uma aparência revolucionária. A condição do proletariado alemão em 1945 era um dos elementos centrais desmoralizando o movimento trotskista mundial e lançando as bases para o pablismo. Milhares de jovens alemães com pensamento revolucionário representam um potencial precioso enquanto nos movemos para um período de novas e aprofundadas rivalidades inter-imperialistas. Se essa camada da juventude radical alemã não puder se inserir em seções avançadas do proletariado da Europa Central, na criação de uma nova formação partidária bolchevique, a relação de forças internacionalmente, entre o proletariado e os vários setores da burguesia, irá pender muito fortemente contra nossa vitória na luta de classes.

A não ser que essa camada da juventude alemã, que não é apenas o Spartacus/BL (e provavelmente o maior centro de gravidade está na juventude maoísta), possa interceder nas seções avançadas da classe trabalhadora alemã para construir um novo partido bolchevique de combate na Europa Central, o equilíbrio de forças entre a burguesia imperialista e o proletariado nas agudas lutas de classe nesse período irá pesar contra nós.

Como o último orador antes de mim atestou, o Spartacus/BL não tem falta de energia ou auto-confiança. [Risos e aplausos].

Nós vemos dois problemas em paralelo internacionalmente entre aqueles que professam serem trotskistas. Um não é o que ocorre aqui. É o bolchevismo formal com todas as lições formais propriamente assimiladas, representado por tais formações como o POUM espanhol, a OCI francesa, o POR boliviano. O problema, e não é uma questão definitivamente fechada, é que enquanto esses camaradas dominaram, até mesmo de uma maneira que vocês ainda não dominaram, o formato de uma organização bolchevique, eles minimizaram o seu conteúdo. Eles não vêem a frente única e todos os seus fenômenos relacionados – isto é, entrismo em outras formações operárias reformistas, processos de reagrupamento e similares – como a forma pela qual, para citar Trotsky, “a base proletária deve ser lançada contra sua liderança burguesa”. Ao invés disso, eles buscam embaçar o partido dentro da frente única, esperando, por exemplo na França, que o Partido Socialista e o Partido Comunista atinjam de alguma forma, por se unirem organizativamente, uma linha proletária revolucionária. Eles cancelam o papel que os bolcheviques tem a cumprir.

Nós vemos um problema diferente com a sua organização em particular, e essa é uma tendência de voltar à aparência política e formal da socialdemocracia russa como era em torno de 1903. Até onde alguns de vocês fazem isso de maneira ingênua, isso pode ser superado através de disputa política. Mas aqueles entre vocês que deliberadamente ignoram a experiência da revolução de outubro, a fundação da Internacional Comunista e tudo que veio depois – os primeiros quatro congressos da Comintern, a luta da Oposição de Esquerda trotskista – aqueles dentre vocês que viram as costas para isso, já são pequenos e oportunistas Kautskys embrionários.

Deixem-me explicar no que acreditamos ser o papel central e crucial da democracia partidária, sobre qual é a função da democracia interna, a chamada liberdade de criticar internamente, entre os revolucionários mais antigos. Por vezes se encontra, mesmo dentro do movimento trotskista, uma noção de que a disputa interna e o papel das minorias é um luxo necessário, enquanto entre os stalinistas e maoístas, um luxo desnecessário, traiçoeiro e dispensável. Ainda com todos os erros dos Bolcheviques, eles ainda conseguiram liderar os trabalhadores russos em direção ao poder. Há uma série de coisas erradas com a questão. Em primeiro lugar, se parte da premissa que se tem o programa perfeito, que não contém erros nesse momento. É necessário entender que em determinado ponto na história, enquanto a vanguarda pode ter assimilado e generalizado as experiências do passado, o futuro não é idêntico. Dessa forma, nós devemos acreditar que assim como o Iskra entre 1900-1903 continha os germes dos futuros Bolcheviques e futuros Mencheviques, também na Liga Espartaquista nós contemos os pontos de partida para muitas possibilidades. E, uma vez que nós iremos enfrentar novas, cruciais e inesperadas viradas nas quais iremos aplicar nossa teoria e experiência acumuladas, nós devemos esperar que haverá possibilidades íngremes e imprevisíveis surgindo de tais disputas – disputas internas do partido. E existe a possibilidade para os camaradas que cometem erros, desvios, superá-los através do processo de luta, na luz de continuada experiência. É assim que é essa luta interna do partido não é algo estranho, ou importado, ou externo ou o produto de agentes inimigos, como reivindicam os stalinistas.

Assim, a disputa interna do partido é uma necessidade. É necessário para um partido que deseja ser viável como um partido proletário revolucionário. Isso é uma coisa. As coisas são diferentes para aqueles que ignoram completamente as experiências previamente acumuladas do movimento marxista revolucionário e que se recusam a operar num formato já desenvolvido programática e teoricamente.

Qualquer variante da concepção kautskista do “partido de toda a classe” é uma posição completamente não-revolucionária e, em última instância, contra-revolucionária. O mais recente e mais amplo representante dessa espécie de revisionismo é Max Shachtman. O maior artigo recente que ele escreveu se intitula “Comunismo Americano: um Exame do Passado”. Ele encontra o pecado original do comunismo nos rachas à esquerda da socialdemocracia que ocorreram durante e após a Primeira Guerra Mundial, criando uma divisão na expressão política do proletariado. Ele descobre a causa desses rachas numa mudança do entendimento do papel do reformismo, do oportunismo, pelos revolucionários socialistas dentro do movimento da classe trabalhadora.

Shachtman cita Lenin muito favoravelmente ao longo do período de 1908. Em particular, ele observa que se os revolucionários tivessem simplesmente seguido a regra de “liberdade para criticar, unidade na ação”, a unidade do partido proletário poderia ter sido preservada. Ele argumenta que naquele tempo Lenin tinha um entendimento do oportunismo como um aspecto transiente, efêmero, secundário do movimento dos trabalhadores. Em particular, ele preza Lenin por defender que naquelas regiões onde os Bolcheviques estivessem em minoria, eles deveriam se subordinar aos Mencheviques e votar pelo partido Cadete [Constitucional Democrata] (onde os Bolcheviques tivessem a maioria, Lenin prossegue, eles deveriam ou votar por candidatos socialdemocratas ou, se não tivessem outra opção, se abster). Shachtman, por ter se tornado um socialdemocrata, não penetra na razão para a evolução nas visões da tendência Bolchevique. Ele meramente descreve as mudanças na posição leninista como uma forma de pecado original.

Nós estamos lidando, no período que vai da fundação do Iskra até a fundação do Partido Bolchevique em 1912, com a transformação da tendência Bolchevique de uma organização revolucionária socialdemocrata para uma organização comunista embrionária. O modelo para os socialdemocratas revolucionários russos no período inicial era a socialdemocracia alemã. Na determinação da ala bolchevique em conseguir uma revolução contra o czarismo, sua prática política veio antes de seu modelo teórico. E, é claro, sua prática organizativa chegou ainda mais tarde e foi altamente empírica sob condições clandestinas.

Era possível que Lenin, durante o período da reunificação da socialdemocracia russa, 1905-1907, desenhasse conclusões sobre a disciplina de um partido de reformistas e revolucionários que seria rejeitada de imediato por qualquer leninista hoje. Isso não nos torna mais espertos que Marx ou Lenin, isso significa meramente que nós somos capazes de enfrentar questões políticas atuais na luz da experiência deles.

Entre parênteses, uma das nossas principais diferenças com Healy e Wohlforth reside nesse ponto. Para Healy (e palavras me faltam para descrever a qualidade da arrogância em tal pressuposto), a cada dia e a cada novo acontecimento, ele se torna cada vez melhor – inclusive melhor do que Lenin.

A verdade é historicamente condicionada; isto é, o semblante do movimento comunista nos primeiros quatro congressos da Internacional Comunista se ergueu sobre um levante histórico e bem sucedido do proletariado revolucionário.

Um rompimento teórico e uma generalização comparável acompanharam essa massiva conquista revolucionária….

Dessa forma, o desenvolvimento teórico da vanguarda proletária no período 1919-23 da Internacional Comunista esteve no alto de uma montanha. Mas desde aquele tempo, desde o período da Oposição de Esquerda trotskista até a sua morte e posteriormente, o proletariado tem testemunhado principalmente derrotas, e a vanguarda revolucionária ou tem diminuído ou sua continuidade tem se perdido em muitos países. Não se pode separar a habilidade de conhecer o mundo da habilidade para modificá-lo, e a nossa capacidade de mudar o mundo só pode ser comparada em muito pequena escala aos dias heróicos da Internacional Comunista.

[Troca da fita]

Ao mesmo tempo, uma das grandes conquistas dos Bolcheviques foi reconhecer que um racha político na classe trabalhadora é uma precondição para a revolução proletária. Os Bolcheviques tinham chegado a essa conclusão em 4 de agosto de 1914, mas eles não tinham generalizado isso nem teoricamente e nem internacionalmente. A esquerda revolucionária alemã desse tempo pagou com a perda de seus líderes, Luxemburgo e Liebknecht, e uma revolução perdida por sua falha em assimilar essa lição.

Movimentismo e “Liberdade de Criticar”

Nós apresentamos para vocês, camaradas, em nossas saudações escritas à sua conferência, uma certa definição do nosso entendimento da forma de organização leninista: “Nós declaramos que o princípio fundamental para os comunistas é aquele da luta entre os camaradas para ganhar a maioria para o seu programa, e que qualquer um que busque mobilizar forças de consciência atrasada e elementos externos da classe de fora da organização marxista revolucionária para poder ascender dentro de tal organização não é um comunista”. Partir dessa concepção significaria imediatamente levar à organização dos setores de consciência mais atrasada da classe contra o partido, especialmente a sua maioria. Eu digo isso em conexão com o slogan “liberdade de criticar, unidade na ação” empregado no partido unitário Bolchevique-Menchevique de 1906. A longo prazo ele necessariamente leva a dissolver o partido de volta à classe como um todo.

Nos Estados Unidos, somos familiares com uma espécie particular de movimentismo, os semi-sindicalistas como o grupo de Ellens (relacionado ao Lutte Ouvrière) e a linha majoritária da Tendência Leninista, que tem uma concepção de que a classe trabalhadora, em suas condições naturais, tem uma essência puramente revolucionária. Agora foi lançado um excelente livro chamado A formação da classe operária inglesa, de E.P. Thompson, e nos parágrafos de abertura ele faz a observação de que a classe trabalhadora não pode ser descrita como uma classe desassociada da sociedade capitalista. Ela só pode ser vista no contexto, não apenas da economia, mas das relações sociais da sociedade como um todo. Há setores de consciência atrasada na classe trabalhadora. Os trabalhadores que apóiam a socialdemocracia na maioria dos países são relativamente avançados, como é o caso dos trabalhadores que apóiam os partidos stalinistas onde eles são partidos de massa.

Em uma classe trabalhadora como a dos Estados Unidos, amplos setores dos trabalhadores são muito atrasados de fato. Mas eles são atrasados do ponto de vista dos interesses históricos representados pela vanguarda proletária. Eles são adiantados em termos de idéias burguesas. Religião, alcoolismo, machismo e as mais virulentas formas de racismo são manifestações predominantes na ausência de luta de classes e sem a presença de uma vanguarda proletária. Os movimentistas se recusam a ver tudo isso e, no lugar, vêem um proletariado puro, descontaminado e isolado. Ao mesmo tempo, eles vêem o partido de vanguarda como uma mistura de trabalhadores radicais e intelectuais radicais que podem ser não tão diferentes de sua classe de origem.

O principal partido internacional dos Socialistas Internacionais (IS), a organização britânica de Tony Cliff, se tornou recentemente movimentista. A IS, como uma coleção dos melhores centristas do mundo, segue avidamente cada novidade política. Até poucos anos atrás, eles eram pró-Partido Trabalhista e seu jornal se chamava Operário Trabalhista. Hoje eles são bastante opostos ao Partido Trabalhista Britânico, negando que ele tenha qualquer caráter de classe operária, e agora chamam seu jornal de Operário Socialista (os pablistas fizeram algo parecido na Europa nos últimos três ou quatro anos).

Isso foi apenas uma prévia da atual visão de Tony Cliff.

Com a intenção de se unir à alma dos trabalhadores (enquanto se posiciona contra o malvado Partido Trabalhista, que ele certa vez idolatrou), ele escreveu um artigo chamado “Trotsky sobre Substituísmo” [no livro da IS Partido e Classe], do qual eu gostaria de ler uma citação:

“Uma vez que o partido revolucionário não pode ter interesses que não sejam os da classe, todos os assuntos políticos do partido são aqueles da classe e eles deveriam portanto ser trabalhados abertamente na sua presença. A liberdade de discussão que existe numa reunião de fábrica, que busca a unidade de ação depois que as decisões são tomadas, devem se aplicar ao partido revolucionário. Isso significa que todas as discussões sobre questões básicas devem ser feitas na luz do dia, na imprensa aberta. Deixem as massas de trabalhadores tomar parte na discussão. Ponham pressão sobre o partido, seu aparato, sua liderança.”

É um pouco estranho saber o que dizer sobre isso. A idéia de que toda a classe, em todo o seu atraso de consciência setorial, racial, nacional, deve ser o júri para decidir questões de estratégia revolucionária é espantosa. Num sindicato, que é uma forma de frente única econômica, ou em uma frente única política, está claro que é necessário que todos os participantes mostrem suas críticas abertamente. Mas a idéia de que trabalhadores que seguem padres, trabalhadores que são stalinistas, trabalhadores que pertencem a partidos socialdemocratas, deveriam pôr pressão para determinar a política dos marxistas revolucionários é uma idéia que irá manter o poder da burguesia até o dia em que uma bomba termonuclear elimine de vez a questão.

“Exceções” ao Centralismo Democrático

Em nossas saudações à sua conferência, nós falamos de certas circunstâncias excepcionais em conexão com a aplicação do centralismo democrático entre os revolucionários….

Entre as circunstâncias excepcionais está a situação na qual o formato do partido não impede, por breve período, um programa marxista revolucionário. No período após o fim da Primeira Guerra Mundial, diversos partidos grandes da Internacional Socialista romperam, com grandes seções, frequentemente maiorias, indo para a Terceira Internacional. França, Alemanha, Checoslováquia, Itália e Estados Unidos vêm à mente. Também foi ganha a ala esquerda do PPS polonês. No período dessa transição, havia apenas essa separação de forma entre partido e programa.

Outra circunstância comparável seria quando os revolucionários entram numa formação política reformista ou centrista. Aí, também, nós lutaríamos pelo máximo de liberdade na discussão pública e pelo mínimo de unidade de ação. Ainda outra circunstância excepcional seria quando a divisão entre o interno e o externo se tornou difusa, como em verdadeiros partidos de massa, especialmente aqueles no poder. Um terceiro caso aparece num documento que eu acabo de ter em mãos intitulado “Sobre o Princípio do Centralismo Democrático: Liberdade de Criticar, Unidade na Ação”. Trotsky é citado ao escrever “A história inteira do bolchevismo é aquela da livre disputa entre tendências e frações”. Essa é uma citação perfeitamente verdadeira, mas ela está fora de contexto porque todas as vezes nesse período (como até mesmo Barbara Gregorich, da Fração Leninista, que fez a pesquisa, admite) Trotsky falava da liberdade de discussão interna.

Aqui está uma citação que torna isso mais claro. Nos Escritos 1932-1933 de Trotsky, falando dos oposicionistas russos, ele comenta “Eles eram sujeitos à perseguição apenas por terem criticado a política da tendência da liderança dentro dos limites internos que haviam constituído o elemento vital da democracia do Partido Bolchevique”. Também no artigo que eu tinha em mãos havia outra citação tirada do Programa de Transição. Ela diz, “Ohne innere Demokratie gibt es keine revolutionäre Erziehung”. [Sem democracia interna não existe educação revolucionária]. Para mim, “ohne innere Demokratie” significa “sem democracia interna”.

Mas a lista de circunstâncias excepcionais se esgotou. Houve o racha projetado de Shachtman e Burnham do Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP) em 1940. Ele dividiu o SWP pela metade na véspera da Segunda Guerra Mundial. Muitos na juventude que seguiram Shachtman e Burnham acreditavam que eles não estavam envolvidos em nenhum revisionismo, mas que estavam construindo um partido revolucionário maior, melhor e mais rápido. Trotsky e Cannon, num esforço para manter durante um pequeno espaço de tempo o estado de unidade formal, fizeram várias concessões substanciais numa tentativa de reter a minoria. Não houve, é claro, nada que detivesse a minoria, mas a maioria de Trotsky deixou claro que essas eram concessões especiais e episódicas numa tentativa de dar àqueles na minoria uma chance, sob condições organizativas mais abertas, para reconsiderar. Foi como quando vocês quiseram fazer concessões especiais ao IKD quando eles se separaram como uma minoria ampla. Mas até um boletim especial interno, que é muito menos que a apresentação pública das diferenças, não é uma condição estável ou saudável na vida interna do partido.

Eu estive em uma organização que teve tais garantias organizativas como uma posição permanente. Foi a Liga Socialista Jovem, o grupo jovem de Shachtman entre 1954-57. Os seguidores de Shachtman tinham posto diversas declarações democráticas sobre “liberdade de criticar” nas suas regras de organização para poder apelar aos liberais que tinham medo do bolchevismo totalitário. Ninguém nunca usava essas regras até que se formou uma ala de esquerda três anos depois. Nós então começamos a publicar o boletim da ala esquerda – não apenas internamente, mas um boletim público próprio. Não poderia haver nenhum outro significado, e ele tinha a intenção clara de ser um boletim de racha. Quando a disputa chegou ao fim, eles tiveram que colocar 22 emendas no seu regulamento. Mas está claro que essas novas restrições eram apenas para os trotskistas causadores de problemas. Os elementos socialdemocratas da ala direita poderiam continuar a praticar a liberdade de criticar.

Isso leva ao centro da questão. Por que, afinal de contas, vocês querem levar suas diferenças para fora da sua organização, para reunir os seus inimigos contra a sua organização? Shachtman também queria. Os liberais radicais norte-americanos tinham se virado de maneira aguda contra a Rússia após o pacto Hitler-Stalin. Aquele setor do SWP que foi mais sensível a essa opinião pública pequeno-burguesa queria provar que eles não eram tão ruins quanto outros trotskistas. E em tempos comuns é sempre desse jeito com aqueles que querem levar seus problemas para fora do partido revolucionário.

Em tempos de grandes turbilhões revolucionários, a massa da classe trabalhadora pode se elevar acima de um partido revolucionário inerte. Lenin enfrentou essa situação algumas vezes entre as revoluções de fevereiro e outubro. Quando ele se via diante da obstrução conservadora do comitê central, ele ameaçava levar a discussão aos trabalhadores. Isso não era liberdade de criticar dentro do partido: isso significava uma racha e a criação de um segundo partido, e Lenin sabia disso. Rachar não é crime, providenciando para que exista suficiente clareza política e necessidade de realizar um racha. Isso é parte do processo político vivo.

Eu agora gostaria de muito brevemente chegar ao assunto das relações internacionais. Nós tivemos uma explosão de separações na Liga Espartaquista no ano passado. Eu acredito que o camarada Hum declarou que nosso centralismo democrático se revelava na prática concreta como alguma forma de burocratismo típico de Healy ou algo do gênero, durante a discussão no ano passado. Eu gostaria de discutir isso um pouco mais concretamente. [Aplausos]. Na verdade, é claro, outra pessoa nos precaveu para nos mantermos longe de todo esse assunto organizativo batido que não trata de política, então eu pensei em virar a mesa e tratar disso concretamente. Entretanto, existe um significado político quando alguém se levanta e diz: “Paul Levi foi perseguido e eu também.” Nós tentamos por três vezes fazer análises políticas bem sucedidas dessa disputa por poder que ocorreu entre nós.

Eu quero dizer algo sobre a relação entre Vanguard NewsLetter, a Fração Leninista, a tendência separatista e, vai haver discussão, a organização de vocês…. O assunto é a combinação sem princípios, algumas vezes chamada mais familiarmente de “bloco podre”. Em algum lugar destas muitas páginas de anotações, eu tinha uma lista de todos os pontos, que até agora nós sabemos, que os vários camaradas desse bloco não tem em comum. Os separatistas evidentemente acreditam que Shachtman foi o melhor de si durante a luta de 1940 contra Trotsky. Eu acredito que os outros grupos citados não concordam com isso. Então nós temos o chamado pela “Quinta Internacional” da Fração Leninista, que parece argumentar essencialmente pelos mesmos termos da Oposição Operária da Rússia de 1921, que chamou nessa ocasião por uma Quarta Internacional.

Eu gostaria que houvesse tempo para discutir as implicações desse chamado por um lado e a posição do IKD, por outro, de construir a Quarta Internacional. Cada um do seu modo, compartilha algo em comum: uma negação da experiência do movimento revolucionário no mínimo, vamos dizer, de 1938 até hoje. Para cada um do seu modo, isso é irrelevante.

Outra contradição nesse bloco é que o Vanguard NewsLetter, de Turner, se vocês olharem bem, se devotou quase exclusivamente ao reagrupamento – isto quer dizer, a apelar por uma fusão aos membros e aos críticos da Workers League, do SWP, da Liga Espartaquista, etc. O camarada Hum descreveu a Liga Espartaquista como irrelevante porque ela apela a organizações cujos membros são irrelevantes à classe trabalhadora. O que isso faz de Turner, que apela para nós? A Fração Leninista, é claro, tem uma perspectiva bem diferente. Ela pode muito bem seguir a direção de Ellens e sepultar a si própria como ela fez genuinamente, mergulhando no nível de consciência da classe trabalhadora.

Alguns dos separatistas, no mínimo, já foram para fora do campo do comunismo. No entanto, a sua organização tem um recorde de favoritismo por essas pessoas. Dois dos seus camaradas trabalharam politicamente e intimamente com Moore neste verão, por trás das costas da Liga Espartaquista. Vocês camaradas, eu acredito, olham com aprovação para uma fusão destes heterogêneos grupos do VNL, Fração Leninista, os separatistas e, possivelmente, purgando a Liga Espartaquista de sua direção e trazendo os elementos de esquerda para essa fusão. O ponto não é que esse esquema não faz nada além de um apelo emocional, é que nós gostaríamos de dizer – e de fato nós vamos contar para vocês – qual programa tal formação pode ter. Isto é, o que vocês teriam criado seria apenas uma IS de segundo nível.

Eu indiquei que é possível para organizações cometerem erros, até mesmo erros muito profundos e se recuperarem deles. Trotsky esteve no bloco de agosto. Era um bloco muito ruim. Ele foi concebido originalmente na base de uma idéia aparentemente muito boa. Isto é, ignorando toda a experiência da primeira revolução russa, reunir todas as tendências socialdemocratas e ver se o partido não poderia ser reunificado. Uma conferência foi chamada e todas as tendências convidadas. A maior parte dos Bolcheviques se recusou a comparecer. Dessa forma, aqueles que foram, ainda que não fosse sua vontade talvez, adquiriram, como um todo, um caráter decisivamente anti-bolchevique. Alguns bolcheviques de ultra-esquerda estavam lá, e proeminentes membros independentes do partido, como Trotsky. Eu acredito que Trotsky posteriormente descreveu este como o maior erro político da sua vida. Mas há uma condição prévia para ter a possibilidade de superar erros políticos. E essa condição é uma implacável vontade de reconhecer a verdade da situação, não importa quanto constrangimento venha a causar aos seus aliados. Vocês podem acreditar que o bloco nos Estados Unidos é melhor do que nós. Isso é assunto para uma discussão. Mas vocês continuarem insistindo, para poder justificar essa crença, que certos elementos de clara deslealdade em relação a vocês são verdadeiros, então isso não é de fato um erro, mas um ato voluntário de oportunismo. Eu acredito que vocês, camaradas, publicaram em seu boletim internacional uma leitura dos eventos dentro da Liga Espartaquista que é, por documentos conhecidos por vocês e certificados pelos separatistas, demonstradamente falsa. Eu tenho uma página de citações aqui que eu gostaria de dividir com o seu comitê central.

Não há de fato tempo suficiente para ler e traduzí-las agora. Mas eu quero apontar o fato de que esse material é, ao menos agora, e deveria ter sido no tempo em que foi publicado, conhecido por vocês, como sendo não simplesmente falso, como um erro, mas voluntariamente falso e, além do mais, materiais que não são uma acusação de alguns erros e atos estúpidos da nossa parte, mas na verdade uma acusação de desonra da parte da Liga Espartaquista. Se nós permitíssemos que fosse publicada em um dos nossos boletins uma acusação dos nossos membros de que o Spartacus/BL tivesse ganho dinheiro do DKP para poder estorvar o SPD em sua campanha, vocês entenderiam como nós nos sentimos. Mas há muitas coisas no mundo que nós não gostamos e que não significam muito. A questão é realmente em termos do seu futuro político, porque se vocês não puderem encarar a realidade (não é por nada, inclusive, que numerosas publicações revolucionárias usam palavras como Pravda e La Vérité [A Verdade]) – se vocês não puderem encarar a realidade, então há uma voluntariedade, um oportunismo, uma súplica de seguir a alma da ala direita que descansa por trás da sua ação, ou das ações de alguns de vocês.

Para concluir, camaradas, nós levamos o seu futuro muito a sério porque está sobre vocês a responsabilidade de criar um partido maior para a revolução mundial. Se vocês vão ou não fazer isso, isso cabe a vocês decidir.

Iskra